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Do conquistador ao empreendedor: a mudança da Av. Bernardo Vieira e o discurso do progresso na cidade de Natal.

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Diego José Fernandes Freire (Professor de história)

Nos últimos dias, uma polêmica envolveu a população natalense, sacudindo-a em meio a grave pandemia que assalta o mundo há mais de um ano. Na última terça-feira do corrente mês, a Câmara Municipal aprovou por maioria absoluta (26 votos, contra 05 da oposição) o projeto de lei do Prefeito Álvaro Dias (Partido Podemos), o qual previa a alteração da nomenclatura de uma avenida da Cidade. Trata-se da mudança em torno do tradicional logradouro Bernardo Vieira, que agora passa a se chamar Avenida Nevaldo Rocha.

De acordo com o Projeto de Lei (PL) do chefe do executivo municipal, precisava vir “à baila a história do empresário potiguar Nevaldo Rocha de Oliveira”. Seu nome, “um dos maiores exemplos de empreendedorismo do Brasil”, estaria mesmo a merecer uma homenagem, em razão dos seus grandes feitos socioeconômicos à capital potiguar: fundação do grupo têxtil Guararapes e do Midway Mall, “que nada fica a dever aos melhores shoppings do mundo”. Nascido em Caraúbas mas residente em Natal desde os 12 anos de idade, Nevaldo Rocha teria trilhado um caminho de sucesso desde os anos 1940, quando abriu sua primeira loja de roupas, denominada A Capital.

Logo, a mudança de denominação da tradicional avenida seria “uma homenagem mais do que justa a um empreendedor nato que escolheu nossa cidade para iniciar sua vida produtiva e que para cá voltou para passar os últimos dias, sempre acompanhando de perto seus negócios”. Nevaldo Rocha seria, pois, já um nome da cidade. Até o fim de sua vida, em um crescente, expandiu seus negócios, no mesmo movimento com que expandiria a cidade. O crescimento de um seria o desenvolvimento do outro. O fundador do Grupo Riachuelo teria sido um verdadeiro dinamizador do progresso citadino. Completamente diferente do antigo patrono da atual Avenida Nevaldo Rocha? É possível estabelecer alguns paralelos entre ambos.   

Bernardo Vieira de Melo (1658-1714) foi um militar aristocrático luso-americano que em fins do século XVII tornou-se capitão-mor (espécie de governador) da capitania do Rio Grande (do Norte).  A Ascensão para este posto foi obtida graças ao reconhecimento que conseguiu ao contribuir para o fim do Quilombo de Palmares, lutando ao lado do famoso bandeirante Domingos Jorge Velho. Durante os cinco anos de sua administração, Bernardo Vieira de Melo seguiu com suas campanhas militares: combateu duramente os índios janduís, com o intuito de pacificar – segundo a linguagem oficial do projeto colonial português – a região, abrindo assim espaço para o homem branco. Casas, prisões, aldeias e vilas foram construídas para marcar o progresso da colonização lusitana.

Figura 1:Natal, Assú e a linha de defesa: relações urbano-territoriais em fins do séc. 17 (FERREIRA & TEIXEIRA, 2006).

Separados por séculos de história, Bernardo Vieira de Melo e Nevaldo Rocha de Oliveira podem, contudo, ser aproximados, enquanto dois homens movidos pela saga do progresso. O primeiro militou em torno do projeto colonial português, durante quase toda a sua vida, desbravando territórios, destruindo comunidades indígenas e quilombolas, a fim de dar livre curso ao empreendimento lusitano de povoamento, conquista, exploração e domínio do Novo Mundo. Com ímpeto de desbravador, que o levou a sair da miséria, Nevaldo Rocha foi realizando suas conquistas profissionais, de loja em loja, negócio em negócio, passando por capitais como Natal, Recife e São Paulo, até estampar a condição de trigésimo homem mais rico do Brasil, segundo levantamento da revista Forbes.

Assim, estamos diante de dois homens em marcha, ainda que cada um com a sua. Para o conquistador, a marcha do progresso civilizatório europeu, entendido como o avanço do cristianismo sobre terras e indivíduos pensados bárbaros. Já para o empreendedor, a marcha da ampliação econômica, da sua grife, dos seus dividendos, dos seus produtos e dos seus empregados, do seu negócio de vida. Se um desbravou terras e gente a fim de limpar o terreno para o homem branco cristão estabelecer-se e reproduzir-se, o outro conquistou mercados, ampliou o seu capital financeiro e humano, em uma palavra: formou um império econômico. Por eles, o progresso passava, como se fosse uma marcha triunfante.     

É claro que não se trata de dois homens idênticos, já que viveram em épocas distintas e bastante apartadas. Os ventos do progresso que sopraram sobre eles não eram os mesmos, por certo. Um foi escravocrata, senhor de engenho, perseguidor de índios e negro(a)s insurreto(a)s; o outro foi um empresário do ramo de industrial têxtil, bem como das áreas de serviço, transporte, crédito e shopping center. Logo, progressos distintos. Todavia, a marca do progresso, espírito que segundo vários filósofos teria dominado a história ocidental do século XVI ao XX, não deixa de se fazer presente na vida de ambos.

O progresso urbano, conforme aclamado pelo prefeito Álvaro Dias, esteve também em jogo durante a vida de Bernardo Vieira de Melo. A cidade de Olinda, onde foi e é igualmente homenageado, deveria a este último sua prosperidade material e social na segunda metade do século XVII. A própria cidade de Natal, segundo Rubenilson Brazão Teixeira e Angela Lúcia Ferreira, teria alcançado a estabilidade social e o crescimento econômico a partir do momento em que houve “a linha de defesa” com a região de Assú, então livre de índios e índias insurgentes. Se Bernardo Vieira de Melo não tivesse contribuído para a urbe natalense, conforme considerado pelas autoridades municipais, por qual razão se justificaria o batismo de uma avenida com o seu nome próprio?

Atravessando séculos de história, a lógica do progresso parece estar na base das homenagens, envolvendo tanto os nomes do conquistador Bernardo Vieira quanto do empreendedor Nevaldo Rocha. Um e outro, no discurso oficial citadino, atuam como fomentadores da cidade, do crescimento urbano, da melhoria socioeconômica. Logo, seriam símbolos da urbanidade que progride, que deixa para trás o passado, rumo à evolução, ininterruptamente. Homens não tanto do passado, mas do presente, onde agem brava e aventureiramente, sem perder de vista o futuro, para onde caminharia a história.

Além disso, os dois homens em marcha representariam projetos de sociedade, com os quais as autoridades municipais, no passado como presente, tendem a estar em concordância. A sociedade do progresso, do homem branco atuante na esfera pública, do self-made man a vencer tudo e todos, da colonização de terras, pessoas e mercados não deixa de encontrar possibilidades de respaldo na trajetória de Bernardo Vieira e Nevaldo Rocha. Suas vidas carregaram uma espécie de colonialidade civilizatória ocidental, ao colocar em curso um projeto social para os homens e para as mulheres de suas épocas.  

O sentido da homenagem feita pela cidade de Natal para os dois parece ter a ver com esta concordância histórica dos grupos dominantes, que através da toponímia veicula seus representantes e valores. Como lembrou Pierre Bourdieu, a realidade é sempre disputada por aqueles que querem dizer o que ela é, o que pode ser, o que pode ou não veicular, o que celebra e o que interdita. Poder que instituí, as homenagens fazem parte da luta pela cidade.

Nesse sentido, o gesto de homenagem, feito no passado para Bernardo Vieira de Melo e agora na atualidade para Nevaldo Rocha de Oliveira, atende a um gesto comum de monumentalização citadina, em que se disputa o lugar que os dois homens poderiam ou deveriam ter na história do Rio Grande do Norte. O impulso de assegurar os feitos de progresso, realizados por ambos, anima a entrada na toponímia urbana natalense, onde estariam, supostamente, protegidos do tempo, do esquecimento, em uma palavra: do anonimato.

Porém, se o progresso foi a força que os aproximou e os moveu, quem garante que não poderá igualmente riscar seus nomes da história, alçando no futuro outros indivíduos ao posto de símbolos e nomes da cidade? Talvez seja justamente este o desejo da larga população natalense, que não só pouco conhece e se identifica com os homenageados, como, sobretudo, aprendeu a desconfiar do progresso e seus ditos representantes, ontem e hoje.

Fontes citadas:

Mensagem do executivo ao projeto de lei 076/2021: Disponível em https://sapl.natal.rn.leg.br/media/sapl/public/materialegislativa/2021/10649/pl_nome_de_rua.pdf Acessado no dia 17/04/2021.

FERREIRA, Angela Lúcia.; TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. CIDADE E TERRITÓRIO: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NO PAPEL FUNCIONAL DA CIDADE POTIGUAR. Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788.
Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. X, núm. 218 (16), 1 de agosto de 2006.