(Auto da Semana Santa em tempos de pandemia)
Por Jacirema da Cunha Tahim
Personagens: o rei, um enfermeiro, um auxiliar do palácio.
(Ao passar rapidamente por um dos corredores do seu palácio, o rei se
deparou com um enfermeiro, imóvel, com ar meditativo; O rei deteve-se
curioso e ambos acabaram travando um diálogo.)
O REI (dirigindo-se ao enfermeiro) – Ao trabalho!
O ENFERMEIRO – Não há trabalho, porque não há trabalhador já que
morto sequer se mexe, e também não há leitos suficientes para acolher os
infectados. Nem coveiro há, e ninguém quererá exercer o ofício deles,
porque o morto viral assusta mais do que os vivos virais. Vamos empilhar
cadáveres pelas ruas? Vamos buscar profissionais de saúde em Marte? Os
países têm se ajudado, mas há um limite, pois os profissionais devem
atender prioritariamente às necessidades do seu próprio país.
O REI – Como é que é?
O ENFERMEIRO – OOh!.., continua o enfermeiro, tentando explicar a
teoria do isolamento: qualquer vírus procede assim: ele segura nas
pessoas, digo, em suas células; o contato entre pessoas, mesmo através
do simples ar que respiram, o faz viajar, e cada pessoa é um porto, uma
escala para sua longa viagem. Sem intercâmbio entre pessoas, não existe
vírus. O vírus sobrevive graças à sua proliferação. Sem residência para
morar, nem mesmo hotel para se hospedar, impossibilitado de procriar,
ele desanima e morre. Por isso, quanto mais pessoas ele encontra, mais
sua viagem se torna prazerosa e infindável. Quando alguém morre, este
não interessa mais ao vírus, pois já cumpriu sua missão. Ele vai atrás dos
humanos vivos, mergulhará em suas mucosas por onde nadará até chegar
aos pulmões. O mundo se tornou um grande hospital com cemitérios
agregados onde se empilham corpos numa arquitetura sinistra. Como
pode ver, senhor, o prazer do vírus é a proliferação.
O REI – Está delirando, quem é você e o que faz aqui próximo aos meus
aposentos?
O ENFERMEIRO (impassível) – E, como pode observar, tudo isto é público
e notório, conforme se diz de fatos e evidências nas áreas judicial e
policial. Ou, ou, estaríamos, quem sabe!, mortos, porém vivendo numa
galáxia perdida depois de a terra planificada ter-se transformado num
imenso fake news, regado com teorias da conspiração? Ora, entendendo
que ambos, eu e o senhor aqui falando, estamos ainda no mundo dos
vivos, ao senhor, que é militar, pergunto: não é verdade que, todo o reino
animal possui como instinto o binômio ataque e defesa?
O REI – Era só o que me faltava agora!
O ENFERMEIRO – A precaução nos animais é instinto, nos humanos, além
disso, é estratégia e inteligência. Nunca soube de um comandante à frente
de sua tropa entregando os soldados ao inimigo, menosprezando a
estratégia da defesa.
A melhor maneira de salvar os humanos e seus empregos, senhor
comandante, é colocando toda a tropa para cumprir a estratégia do
isolamento. Seria um golpe mortal no vírus.
O REI – Bem, poderão morrer alguns, uns 30 mil, é a vida, pagamos nosso
preço, principalmente idosos, pois os hospitais terão que escolher entre os
que matam e os que salvam.
O ENFERMEIRO – Triste assertiva, senhor, já que nem seria eutanásia,
apesar do intenso sofrimento do paciente. Haverá sem dúvida hospitais
especializados na morte por sufocamento. Creio que será tão natural que,
na sequência, alunos de medicina, através da proteção de vidros, virão
presenciar e estudar o fenômeno. Não descarto a ideia, senhor, de que, na
prática, hospitais há muito procedem assim com pacientes idosos. Os
planos de saúde agradecem. Como militar, no entanto, certamente
conhece a ética milenar dos exércitos, quando em guerra, de que nunca se
abandonará um colega ferido – “ninguém será deixado para trás”. Não é a
força das armas de última geração que confere bravura aos soldados, mas
a confiança na moral solidária da tropa. Confiança gerada também pela
figura do velho combatente que desfila em sua cadeira de rodas. É o
passado como referência viva, transmitindo fé e coragem ao presente e ao
futuro. E nenhum comandante numa guerra ousaria escolher entre a
morte do soldado ou a morte do general – o que seria de um sem o outro,
não é mesmo?
E novamente, se desprezamos os guardiões – trabalhadores, soldados,
operários, professores, pescadores, enfermeiros, estivadores –, quem irá
para a linha de frente? Quem sustentará as empresas e as fábricas, quem
fará o trabalho do agricultor? Também não haverá mais garçons para
servir às mesas deste palácio, nem cozinheiros na sua cozinha palaciana,
nem camareiros, piscineiros, jardineiros, seguranças, motoristas, e,
atendentes em lugar nenhum: clínicas, lojas, bancos, escritórios,
farmácias; também não teremos mais água para beber, pois não haverá
mais entregadores – os carregadores de garrafões de água mineral, o
quanto devemos a eles! Também não haverá mais a sagrada série da
inicial “p” : padaria padeiro pão, afinal, senhor, para que serve emprego
sem empregado?
O REI – Mas os idosos – sem hipocrisia, sem hipocrisia! –, para que servem
afinal?
O ENFERMEIRO – Com efeito, ultimamente tenho ouvido frases assim
justamente de idosos! Estariam todos propensos ao suicídio?
Sinceramente, senhor, digo eu com a necessária vênia dos meus tempos
de bacharel, mas já que se refere à idade, seria conveniente lembrar-se de
seu ministro da economia, que tanto preza, dos seus generais, do seu
ministro da segurança institucional e de tantos outros de seu governo, a
perder de vista… Isto para não falar de juízes, desembargadores e dos
ministros da nossa honrada Corte. E que o povo inglês jamais o escute: a
rainha-mãe, que morreu aos 101 anos, em 2002, ainda hoje é venerada
pelos seus compatriotas.
UM CONSELHEIRO – (ali passando em direção aos aposentos reais.)
Meu jovem sobrinho perdeu muitas oportunidades com o cancelamento
do programa Primeiro Emprego. As empresas não se interessaram.
Procuravam pessoas mais experientes, portanto, mais velhas (o
conselheiro mantinha os olhos baixos, enquanto falava, e o corpo em
posição de genuflexão), tudo, em total desacordo com os tempos atuais.
Hoje, estão na vida pública rapazes quase adolescentes, intrépidos,
audazes, apontando o dedo para qualquer um, ainda imberbes, com uma
linguagem arrojada, falando contra a corrupção e fundando partidos. São
extraordinários, especialistas em teorias conspiratórias, técnicos
especializados em fake news; conhecem tudo sobre fascismo, marxismo,
comunismo, nazismo, agrotóxicos, educação, medicina, nutrição,
informática, astronomia e astrologia; sabem leis e códigos …e estão na
política. Tiveram muitos votos, são bem sucedidos em todos os seus
planos.
O ENFERMEIRO – como paulista, não posso deixar de citar a artista
plástica Tomie Ohtake, falecida aos 101 anos, e, o arquiteto desta cidade,
Oscar Niemeyer, falecido aos 105 anos em 2012, ambos em hospitais.
O REI – Já está me faltando a paciência! Pretendia tirar um cochilo e parei
neste cômodo junto a sua pessoa. Afinal, o que quer? (alteando a voz.)
O ENFERMEIRO (curvando-se) – Seu humilde devoto !…
O REI – Mas já que me fez perder tanto tempo, vou obriga-lo a finalmente
responder: para que serve um idoso?
O ENFERMEIRO – Com prazer, não sei se terei sucesso. Vamos tentar.
Recorro ao velho e bom Sócrates…
O REI – Quem?
O ENFERMEIRO – Refiro-me ao nascido em 469 a.C., e que foi condenado
à morte em Atenas sob a acusação de corromper a juventude. Na sua
defesa, ele perguntou aos acusadores: se toda a população quer o bem da
juventude e faz o bem à juventude, como um único indivíduo, um velho
de 71 anos, pode corrompe-la? Pergunta ainda se com os cavalos, por exemplo, ocorreria o mesmo: “toda a gente os melhora e um só os vicia?”
Ou o contrário: “Quem os sabe melhorar é um só, ou muito poucos, os
adestradores?” E conclui, diante do silêncio dos acusadores e com a ironia
de sempre: “Que bom para os moços, se há um só a corrompe-los e os
outros todos a fazer-lhes bem”!
O REI – E daí?
O ENFERMEIRO – Estou a demonstrar a vitalidade do pensamento com a
idade e que cada um de nós é composto de partes de um tempo que se
completa no outro: infância, juventude e velhice. O que seria dos dois
primeiros sem o último e vice-versa?
“Procede da natureza o percurso certo para a existência que transita pelo
próprio traçado (…) cada etapa da idade recebe dela o que lhe convém”,
considerações do velho Cícero, um autor velho. Os jovens da época de
Sócrates souberam encontrar a sua voz, souberam reconhecer a sabedoria
e, por isso, acabaram irritando os invejosos.
Entre o médico pai e o médico filho, descartaríamos o pai? E se de repente
descartássemos todos os idosos da sociedade deixando apenas os jovens
em cena, porque estes têm futuro e os velhos, não, o que seria desses
jovens sem nenhuma referência, nascidos do nada, nascidos por geração
espontânea?…A não ser,
O REI (alteando a voz) – A minha paciência se esgotou!….
(desaparece o conselheiro.)
O ENFERMEIRO – A não ser que a ‘serventia’ – nas expressões “velho não
serve para nada”, “já deu o que tinha que dar”, etc., etc. –, se iguale à
serventia de uma panela, de um carro, de um sapato, de uma ferramenta
qualquer que o próprio homem fabricou e que se desgastou, perdeu a
validade…. Os seres humanos se qualificam da mesma maneira que os
objetos, pela sua utilidade e descarte? Possuem a mesma natureza?
Uma sociedade que despreza seus idosos, que os descarta, e propõe o
assassinato em massa de vulneráveis como algo muito natural – alegando
prejuízos econômicos, já desde as reformas políticas e institucionais, que
os excluíram –, nessa sociedade não demorará que, em família, se faça
uma sinistra escolha entre o pai, o avô e o neto.
Nesta nossa sociedade, senhor, quem sustenta 70% dos lares são os
idosos com seus trocados da aposentadoria. São eles que garantem a
feira, o desemprego do genro, dos filhos, a escola, a saúde dos netos.
Andam mendigando pelas ruas; alguns já fracos e debilitados se arrastam
em busca de um complemento para levar para casa. Não sei se devemos
chama-los de velhos ou de jovens – são nossos combatentes, nossos
heróis anônimos de uma guerra que nunca termina.
O REI – (visivelmente alterado.) Enfermeiro metido a bacharel, ordeno que
saia de meus aposentos e de meu palácio, imediatamente! Passou de
todos os limites! Comunista infiltrado! Vou manda-lo investigar.
(chama os seguranças.)
NATAL, BRASIL,ABRIL/2020