Ivone Gebara – Filósofa e Teóloga Feminista
Nesses últimos meses, muitas pessoas e grupos têm me perguntado qual a mensagem cristã especial frente à pandemia que assola todos os cantos do mundo. E quando fazem essa pergunta, três conotações de fundo emocional e intelectual parecem emergir em busca de confirmação de expectativas. A primeira é que eu me oriente na linha da esperança, presente na tradição cristã, como se pudéssemos encontrar nela uma tábua de salvação segura que ao menos aliviaria nossos temores atuais e nos daria orientações imediatas de vida. Esperam que a religião entregue a segurança de que se necessita na certeza de que Deus não abandona seu povo.
A segunda é a de confirmar que a destruição do mundo e de nossas relações é obra de nossas mãos, de nossa ganância em querer acumular bens, dos quais apenas uma minoria usufrui. E, indiretamente, por nossa escolha, estaríamos agindo contra a vontade de Deus, que quer o bem de toda a humanidade.
A terceira tem a ver com uma flagrante afirmação de que estamos sendo castigados por Deus, por conta de nossos pecados, nossos comportamentos desviacionistas, quanto à sexualidade, à destruição da natureza, aos costumes e, em consequência, por falta de fé nos preceitos divinos. Portanto, por nossa culpa individual e coletiva, estamos na pandemia, embora haja exceções de pessoas que tentam seguir a vontade divina. É interessante notar que o ‘personagem’ Deus entra nas três expectativas, embora de formas diferentes. E o ‘personagem’ passa a ser a imagem e semelhança de nossas posturas sociais e até políticas, de nossa imaginação e de nossas ficções religiosas.
A pergunta que fica é a de saber quem é esse ‘personagem’ para cada grupo e para cada pessoa individualmente, quem é esse alguém que deve apaziguar nossas angústias diante da morte, nos julgar, perdoar, acolher e restaurar nossas vidas ameaçadas.
Confesso que algumas vezes tenho presenciado à frustração de algumas pessoas quando meu parecer não coincide com as expectativas que têm em relação à minha resposta. Sinto-as incomodadas, quase decepcionadas, porque minha reflexão não coincidiu com os argumentos delas e com suas expectativas. Se fosse apenas a discussão de argumentos, não me importaria, mas o fato é que as emoções e reflexões presentes nas perguntas expressam reais sofrimentos em busca de alguém que os/as compreenda e que possa confirmar que, após este turbilhão, algo de bom possa advir dessa situação. Por isso, muitas vezes me calo e respondo: ‘não sabemos’!
Haveria uma única mensagem central que seria uma espécie de antidoto à desesperança ou até mesmo ao desespero no qual vivemos, diante das atuais múltiplas ameaças à vida do planeta e à nossa vida nele? O que se pode dizer quando esse vírus parece não só ter atingido corpos humanos, impedindo-os de respirar e asfixiando-os até a morte, mas atingiu nas suas outras formas governos, polícias, religiões, igrejas que, à maneira do vírus, embora com outras metodologias, reproduzem pandemias mortais de ações e sentidos, mesmo que afirmem estar na luta de combate ao vírus.
De fato, o vírus planetário, o Covid 19, não poupa ninguém, visto que tem formas de expansão ainda não controláveis, o que, por um lado, nos assegura a interdependência comum e, por outro, nos dá um atestado de ignorância sobre nós e o mundo em que vivemos. Embora muitas vezes acreditemos no poder da ciência de responder a quase todas as questões da humanidade, frustra-nos constatar que o que se desconhece é muito mais do que o que se conhece.
Cada pessoa vai encontrar ou não em suas crenças sociais, políticas e religiosas alguma resposta ou falta de resposta às questões que o momento atual tem levantado. Entretanto, o que se pode observar hoje é uma experiência comum de impotência e de desconhecimento de nossa própria vida. Mesmo os mais dogmáticos e convictos de suas posições têm se enfrentado ao vírus da dúvida ou a alguma suspeita em relação às suas certezas. De certa forma, junto com a Covid19, espalhou-se também a dúvida sobre a vida humana e os rumos da história. É como se essa pandemia nos convocasse a sermos diferentes, como se ela manifestasse uma suspeita coletiva de que todos estamos juntos à beira de um abismo e, no ‘tribunal da vida’, a perguntar-nos como nos redimiremos de tantas mortes, de tanto desarranjos em tantas vidas. Por isso, muitas pessoas se perguntam se sobreviverão e, caso positivo, como serão quando a pandemia acabar? Como nos organizaremos? Em que e em quem vamos acreditar? Como vamos costurar nossas crenças passadas aos desafios do mundo presente?
Sem dúvida, talvez até a maioria das pessoas aspire voltar ao ‘tudo como antes’, embora o contágio da dúvida chegue a tocar mesmo que minimamente na vida de todos. Não temos ainda nenhuma resposta às nossas perguntas fora as pequenas aspirações afetivas de rever amigos e familiares, celebrar aniversários, ir aos shoppings ou outras atividades e comemorações coletivas.
Como as respostas da ciência ainda estão em fase de experimentação, muitas pessoas acreditam encontrar uma resposta nas religiões. Elas parecem dar algumas seguranças, pois parecem lidar com poderes para além das ciências, poderes invisíveis, mais invisíveis do que o Covid 19. Por isso, multiplicam-se os cultos pela internet, as orações implorando a Deus a salvação do mundo, as bençãos em caminhões abertos ou helicópteros, reavivando velhas devoções consideradas ‘poderosas’.
Mas o que significa a salvação do mundo? Será apenas da Covid 19 que estamos querendo salvar-nos? Que dizer dos excessos de racismo que estamos verificando a cada dia? Que dizer das agressões às mulheres, ‘nas prisões domiciliares’? Que dizer do extermínio das pessoas que vivem nas periferias, de sua exposição às loucuras dos exterminadores, dos puristas, dos justiceiros que imaginam a possibilidade de fazer justiça com as próprias mãos armadas ou não? Que dizer dos transgressores, dos que não creem na pandemia, que a afrontam como se quisessem medir forças com ela? Que respostas dão as religiões na sua diversidade crescente?
Na realidade, não penso que as religiões na sua diversidade têm alguma resposta eficaz aos problemas atuais da humanidade, apesar de sua importância para muitos. São formas institucionais de consolo e intentos de ‘proteção metafísica’ que se desenvolvem no interior de nossas culturas misturadas a emoções e problemas cotidianos. Embora não negue seu valor para muitas pessoas, na realidade, elas entram tanto quanto outras ações de ‘auto ajuda’ ou de benemerência na linha do auxílio que damos uns aos outros nos momentos críticos da vida. Este auxílio é, no fundo, para além das religiões, e é a ele que gostaria de me apegar como uma precária ‘boia’ quando parecemos estar nos afundando num dilúvio coletivo. É como se nas nossas entranhas humanas, a desses humanos que somos agora, houvesse boias não apenas individuais, mas boias coletivas. A pandemia acorda as entranhas coletivas e as religiões são apenas um instrumento entre outros para fazer valer a força coletiva de sustentação dessa boia.
A dor comum parece acordar a solidariedade comum, sobretudo porque ninguém está ao abrigo das dores pandêmicas. Por mais que alguns sejam mais protegidos que outros, a situação atual revela a vulnerabilidade de todos. E talvez, nessa situação, algo, para além de uma religião determinada, precisaria ser reforçado e desenvolvido. Seria como a constituição de uma irmandade para além dos credos religiosos, um pacto, uma aliança entre nós para além de nossos deuses e deusas, para além dos locais de culto de uns e outros, para além dos velhos credos. Nossos deuses e deusas correm o risco de serem sectários, de exigirem leis e sacrifícios segundo suas peculiaridades e especialidades. Nossos deuses têm o vírus da competição entre eles na medida em que se tornaram a nossa imagem e semelhança. Precisamos, por um tempo, dar-lhes folga, talvez deixá-los em sua ‘quarentena’ até que a nossa própria quarentena possa passar e possamos ver claro o caminho pessoal/coletivo da humanidade.
Nossos deuses já não conseguem dar-nos as soluções porque seus desejos sobre nós são múltiplos e contraditórios e, hoje, até eles brigam entre si tornando nossas brigas aparentes conflitos reais entre deuses. Da mesma forma, os ministros de nossos deuses são movidos por interesses privados e usam dos deuses e da fragilidade dos crentes como armas para manterem seu poder e privilégio.
Estaria eu exagerando? Estaria eu fugindo da acolhida e da ternura de nossos deuses ou de nossos santos? Estaria negando a importância das tradições religiosas? Estaria duvidando do amor divino e do sacrifício de Cristo por nós? Ouso dizer que sim e que não, visto que estou convencida que somos nós que entregamos poderes aos nossos deuses, somos nós que lhes construímos altares, genuflexórios nos quais nos ajoelhamos, acreditando adorá-los e obedecê-los incondicionalmente. Somos nós que lhes acendemos velas, ofertamos incenso e sacrificamos nossos corpos. Somos nós que os vestimos e nos vestimos para eles, como se nossas vestes sacerdotais ou outras indicassem nossa pertença a essa ou aquela divindade que não necessariamente se alia às vontades de outras do mesmo Olimpo ou de outros. A diversidade de deuses/as e Olimpos é bem presente e conhecida. Acompanha a diversidade dos grupos humanos, seus conflitos e suas invenções.
Nessa pandemia, nossas divindades são também vítimas de nós mesmos/as. Sem nos dar-nos conta, as fazemos objeto de nossas vontades muitas vezes contraditórias. Em nome delas, atacamos, defendemos, matamos e morremos. Em nome delas, nos enriquecemos e nos empobrecemos.
Será que em tempos de pandemia todos temos os mesmos pedidos às nossas divindades, todos/as agimos em vista de um bem maior? Cada um vai sem dúvida puxar a sardinha para sua brasa. Entretanto, talvez haja um ponto em comum a ser reconhecido. Este é o de livrar-nos da pandemia ou proteger-nos e proteger nossos próximos dela. Porém, já o fato de estarmos numa pandemia, já estamos numa ameaça e numa efetivação real de mortes. Então, se desesperadamente pedimos para viver, para sermos liberados dessa doença, nossos pedidos vêm acompanhados de muitos outros que têm a ver com um durante e um pós pandemia. E esses pedidos, sem dúvida, vão favorecer primeiro os mais próximos de nós. Isto é, sem dúvida, uma característica de nossa animalidade. A galinha protege antes seus pintinhos do que os gatinhos da gata da casa. A leoa seus leõezinhos e assim por diante. Num incêndio de uma escola, salvo primeiro o meu filho e depois o da vizinha.
E se, por um momento, aceitássemos o fato de que ter religião deveria ser algo diferente do que fomos habituados/as a ter? Se, por um momento, colocássemos entre parêntesis as vontades divinas, as leis promulgadas por Deus, as elaborações teológicas de seus ministros, os prêmios e castigos prometidos? Se, por um instante, nos sentíssemos nus uns diante dos outros: sem deuses, sem santos e sem armas de guerra? Se não houvesse mais Templos e nem pregadores? Se não houvesse mais escolas de teologias e de ministérios? Se não houvesse mais dízimos e contas bancárias para benemerência? O que seria de nossa história religiosa?
Uma das funções das religiões, desde os tempos mais antigos, foi chamar a nossa atenção para o fechamento à nossa animalidade individual, à nossa coletividade mais próxima, à família animal à qual pertencemos. Por isso, ir ao encontro dos caídos nas estradas da vida, porque sempre haverá caídos/as, ‘sempre’ criaremos caídos, faz parte de todas as religiões e sabedorias. E, nessa mesma perspectiva, a luta contra o acúmulo de bens, contra a avareza, a gula em todos os seus sentidos, enfim, contra os excessos que nos tornam escravos de nossas vis paixões, foi uma constante. Assim, do momento em que somos capazes de romper com essa individualidade animal exacerbada, estamos também nos distanciando da espontaneidade animal ególatra para nos tornarmos um ‘humus transformado’, humus espécie capaz de aproximar-se de seus semelhantes diferentes. Tal conquista foi e é fruto de milhares de anos de socialização e ainda não atingimos o lugar que intuímos dever chegar, ou seja, o lugar de sermos capazes de amar nosso próximo como a nós mesmos. Para provarmos algo desse objetivo comum, há que exercitar-se, há que lutar contra as tendências espontâneas individualistas egoístas que nos habitam, há que ceder um lugar aos enjeitados à nossa mesa, há que saber dividir o pão e os peixes que escondemos em nossas bolsas, o vinho que deixamos envelhecer nos nossos odres, há que descer dos sicômoros e devolver ao povo o que roubamos para benefício nosso. Não basta apenas um único Jesus de Nazaré, um só Francisco de Assis, um só Maomé, um só Moisés para fazer isso. Não basta uma só Sara e uma Agar, uma só Maria ou Madalena, uma Khadija ou uma Mãe Menininha que queiramos imitar. É preciso que muitas/os entrem nessa lógica, a partir de nosso tempo e contexto, até que ela seja uma prática, até que ela seja ‘etos’, comportamento ético das maiorias, sabendo bem de sua fragilidade real.
Para provarmos de algo dessa finalidade comum, temos que ser capazes de aprender cada dia a controlar as forças de destruição que nos habitam, forças sem dúvida mais potentes que as carícias amorosas ou o cuidado que temos uns com os outros. A força do eu fechado em si mesmo, se tornando seu próprio império, querendo sempre mais expandir-se para si mesmo é destruidora não só de seu pequeno mundo mas de muitos outros pequenos mundos que giram em torno de si mesmo. E essa destruição tem força de expansão e capacidade de transformar o bom fermento em algo ‘pedrado’, incapaz de levedar a massa e torná-la pão saboroso para todos. E as pedras então são atiradas contra mulheres, adolescentes, crianças, indígenas, negros, mendigos, homossexuais. E o dinheiro é guardado em bancos de pedra que de repente um raio fulminante e fumegante poderá ser capaz de queimar e reduzir a cinzas.
De que serve a religião se ela afasta, se ela isola, se ela julga e mata, se ela acumula, se ela se torna pedra? De que servem os deuses do céu quando já não têm nenhum poder sobre os deuses humanos da terra? De que serve a religião quando deixa de ser ligação, conexão, interdependência vital, poesia de vida? É melhor tentar começar a religar de novo, a comer apenas o pão de cada dia, a perdoar dívidas, a andar a pé, a não cair nas tentações da egolatria que nos rodeia e nos habita.
Religião em tempos de Covid 19 é sentir e saber que o mesmo vírus nos habita de muitas formas, a mesma mortalidade nos espreita, a mesma fome e a mesma sede habitam nossos corpos, a mesma falta de ar nos desfalece e que é preciso abrir as mãos para que os corações se abram e deixem o Covid desaparecer. Talvez, assim ele tenha cumprido sua missão, a missão de nos lembrar o que havíamos esquecido, a de ‘ser irmanados/as’ pela mesma vida e pela mesma morte. Não se foge a essa condição, esse é o segredo escondido em nós, gravado em todas as células de nosso ser, tatuagem perene e ao mesmo tempo provisória. É essa condição que nos identifica, que nos torna o que de fato somos: um caniço frágil que hoje respira e se move, mas que amanhã será estrume na renovação da terra/vida. Por isso, os antigos gostavam de meditar sobre a morte, a minha e a dos outros para indicar a necessidade de agir sabendo que o mundo não me pertence e que essa breve ou longa vida entregará à terra seu último respiro para que a vida se renove e siga adiante.
Morte? Que esperança pode vir da morte, quando o que queremos é fugir dela? Na realidade, precisamos estar integramente e integralmente vivos para pensar sobre a morte. Não se pensa na morte quando se está morrendo cada dia de fome, sede ou de falta de habitação. Nessa situação, já se vive o prenúncio e o anúncio cotidiano da morte. Porém, em vida há que pensar a morte na economia, na política, na ciência, na religião, também como ameaças. E isto porque pensar na morte é pensar na relatividade absoluta dos seres humanos e, por isso mesmo, na necessidade de respeito absoluto a todas as vidas hoje. Todas devem provar do prazer de estar vivo, de nutrir-se de vida, de reproduzir-se, de atrair-se e amar-se nesse instante evolutivo único, nesse momento passageiro em que nos encontramos e fazemos história juntos. Pensar na morte é o fiel da balança da história, o prumo de nossas construções, os óculos que ajudam a enxergar a medida das coisas, das situações e das pessoas. Não é louvor barato à morte, não é necrofilia, mas é sua acolhida nos recônditos de nossas buscas, de nossos processos sociais, políticos e religiosos para exaltar ou valorizar a frágil vida de cada dia. Talvez ela possa fazer-nos religar nossos corpos a outros corpos, religar como se fôssemos um só corpo, como se cada corpo fosse o corpo e o ar comum na casa comum, na autonomia e na interdependência mútuas.
De fato, escrever isso pode parecer muita poesia inútil, mas estou segura de que é ela que, em parte, nos salvará, que nos devolverá algo de ternura e apreciação da doce brisa em uma tarde de verão. É ela que ensinará aos soberbos que somos a humildade; aos gananciosos, a importância do limite; aos orgulhosos, a necessidade da interdependência. Por isso, no século XII, alguém em Assis chamou ‘a morte’ de irmã, talvez irmã gêmea da vida, irmãs absolutamente inseparáveis. E essa irmandade não pode ser esquecida em todos os momentos de nossas vidas; desde o amanhecer ao entardecer, como uma sinfonia que começa e tem que acabar, como um momento único e original que precisa ser vivido e amado.