O Brasil é um país notoriamente desigual. E a educação é, certamente, um dos setores em que a desigualdade inflige de maneira mais influente, persistente e injusta o seu peso sobre a vida dos indivíduos. A classe social em que nascemos, a composição de nossa família, o gênero e a raça a que pertencemos, o tipo e local de nossa residência, são todos eles fatores fortemente condicionantes de nossas oportunidades educacionais, quantos de anos de estudo em média temos e, até mesmo, de nossas chances de êxito escolar e nosso desempenho em provas e seleções. As desigualdades sociais, assim reza uma antiga e ainda válida tese da sociologia da educação, tendem a se transformar em desigualdades escolares.
A pandemia do novo coronavírus tornou ainda mais patente a questão das consequências das desigualdades sociais sobre a educação, em especial, mas não somente, por conta das assimetrias de acesso à internet. Professores, sindicatos docentes e organizações estudantis e da sociedade civil em todo o país tem alertado acerca dos problemas e consequências educacionais a esse respeito. No entanto, mesmo o ensino médio sendo, como é sobejamente conhecido, a etapa mais sensível e vulnerável às desigualdades, o ministro da Educação Abraham Weintraub se mostrou resistente acerca do necessário adiamento do ENEM por conta das restrições e consequências da pandemia de Covid-19.
O ministro da Educação, de maneira irredutível, ignora uma questão bastante evidente: a potencialização dos efeitos das desigualdades sobre o desempenho e resultados do ENEM. O adiamento da prova não é suficiente para garantir condições menos desiguais para os estudantes mais pobres. Não são trinta ou sessenta dias que irão reduzir as amplas desigualdades deste momento. Sem um devido e consistente plano para enfrentar o “apagão” do ensino e avaliar seriamente o que é o necessário para maior equidade, os que já entram em desvantagem no Exame Nacional, os alunos mais pobres, estarão em uma desvantagem ainda maior para concorrer a uma vaga no ensino superior.
De maneira brusca, e em meio as todas consequências sociais, econômicas e emocionais envolvidas na pandemia de Covid-19, milhões de estudantes se viram obrigados a tocar suas rotinas de estudo por meio do ensino a distância. E isso em uma sociedade, como bem se sabe, em que o acesso à tecnologia e às formas de conexão à internet são extremamente desiguais. Conforme a Pesquisa TIC Domicílio 2018, 33% dos domicílios no Brasil não dispõem de nenhuma forma de acesso à rede mundial de computadores e 56% dos usuários da internet a acessam apenas pelo celular. Pesquisa recente da Unicef estimou em quase 5 milhões o número de crianças e adolescentes brasileiras sem acesso à internet em casa, a maior parte residente nas regiões Norte e Nordeste.
Além do acesso em si, é preciso não esquecer nem minimizar as desigualdades das habilidades digitais e de condições de uso e manutenção das tecnologias de comunicação e informação entre os estudantes. As disparidades são também de domínio técnico das ferramentas, das próprias plataformas tecnológicas utilizadas, suas possibilidades e limitações em termos de textos, vídeos, podcasts, bibliotecas online, e dos tempos e espaços em que tais ferramentas são utilizadas pelos usuários. Ora, uma coisa é estudar por meio de um notebook com um bom processador e com uma boa internet de banda larga num quarto/escritório individual e confortável. Outra coisa, completamente diferente em termos de concentração, motivação, rotina e rendimento, é estudar por meio de uma tela de quatro polegadas de um celular com uma conexão móvel e pacote de dados restrito, e tendo que buscar, em uma casa de poucos cômodos e vários residentes, algum lugar onde o sinal seja melhor e menos oscilante. As desigualdades sociais tendem a se estender como desigualdades digitais.
As perdas e danos escolares provocados pelas restrições da pandemia não são repartidas igualmente por todos os alunos. Longe das salas de aula, são os estudantes provenientes de contextos familiares com menos oportunidades e estímulos culturais em casa, como acesso à livros e envolvimento parental nas atividades escolares, que mais sentirão os efeitos da ausência da interação em ambiente escolar. Para esses estudantes, a preparação para uma prova notavelmente exigente quanto às habilidades interpretativas, analíticas e de contextualização do candidato, com muita leitura de textos, referências culturais e resolução de situações-problema, se torna uma tarefa ainda mais complicada e árdua.
Com um piso salarial de 2.886,24 R$, não respeitado em muitas regiões, cumpre perguntar também quantos professores tem computador em casa, como é seu uso (exclusivo, compartilhado), condições de acesso à internet etc.. As desigualdades digitais, em suas diversas dimensões, também atingem os professores, e mais os da rede pública do que os da rede privada.
Desse modo, o emprego do ensino a distância, de maneira generalizada, abrupta e sem preparação docente e discente adequada, serve mais à ampliação das desigualdades educacionais do que, como imaginam alguns, à solução do problema da continuidade da educação escolar. O ENEM, nesse sentido, tende a ser uma prova ainda mais desigual para os estudantes de famílias pobres – que constituem a maior parte dos candidatos. Como já demonstraram diversas pesquisas que analisaram os resultados anteriores, o ENEM é marcado por uma grande desigualdade de desempenho, principalmente quando se leva em conta renda familiar, escolaridade dos pais e se os alunos são oriundos da rede pública ou particular. Em pesquisa recente, o cientista social Cássio José de Oliveira mostrou que nas notas abaixo de 500 pontos, predominam estudantes de escolas públicas (91%), de famílias de baixa renda (78,3%) e com pais com poucos anos de escolaridade. Enquanto nas notas mais altas, entre 800 e 1000 pontos, por sua vez, predominam estudantes de escolas privadas (79%), com renda familiar maior ou igual a dez salários mínimos (54,8%) e com pais com ensino superior completo (78%). Se, em tempos “normais”, dados como esses deveriam ser o bastante para repensar muita coisa em relação ao Exame , o que dizer, então, em tempos de pandemia e de suspensão das aulas presenciais?
Sem um debate sério e um plano nacional sobre o que fazer (quanto tempo seria necessário postergar, formação e capacitação docente, disponibilização de equipamentos etc), realizar o ENEM sob essas novas e díspares condições significa tão somente acentuar as amplas desigualdades escolares já existentes. A força e influência destes três elementos, que são a classe social, o ambiente familiar e a segmentação institucional público/privado do sistema de ensino nacional, já bastante relevantes e decisivos na conformação das desigualdades e resultados educacionais brasileiros, tendem a ser mais significativas e maiores, aumentando o fosso entre os estudantes. Em outras palavras, será um ENEM sob medida para os alunos oriundos das classes médias e matriculados em escolas privadas.
Numa reunião com senadores, Weintraub afirmou que o “ENEM não foi feito para corrigir injustiças, mas para selecionar os melhores”. Sem entrar na questão da concepção estreita de educação, e que está, diga-se, totalmente em desacordo com os principais documentos e diretrizes educacionais do país, o curioso dessa fala é que, para defender a manutenção do Exame, o ministro apelou para a meritocracia sem perceber que deveria ser, entre outras razões, exatamente em nome dela que ele deveria suspender o Exame Nacional deste ano.
Como sustentou John Rawls, um dos nomes mais importantes das teorias da justiça no pensamento filosófico, uma sociedade meritocrática requer que as instituições sociais busquem maximizar as condições e oportunidades das pessoas que se encontram em situação de desvantagem. No cenário iníquo da pandemia, Weintraub está realizando o contrário, isto é, ele maximiza as chances das pessoas que já se encontram em uma situação privilegiada e de vantagem social em relação às demais. Em vez de procurar reduzir o impacto educacional das desigualdades e da suspensão das aulas presenciais nas populações mais pobres, o ministro da Educação está, na verdade, buscando agravá-las ao ponto da competição desleal. Uma meritocracia que se orienta para os grupos mais afortunados da sociedade não é de modo algum meritocracia. Sem respeitar princípios básicos de equidade e de oportunidades, ela é, como escreveu Hannah Arendt, apenas um “outro nome para oligarquia”.