Muita gente conhece a expressão “banalidade do mal”. Formulada pela filosofa Hannah Arendt em seu livro”Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, aquela ideia concebida depois que a filósofa acompanhou o julgamento de Adolf Eichmann em 1961, oficial nazista acusado de ter participado da “Solução Final”, um plano de genocídio da população judia.
O conceito coloca em perspectiva o perigo de pessoas comuns “normalizarem” o mal, que podem realizar ou cumprir determinadas ações por mera “obediência” às ordens de um tirano. Contudo, tornar o mal/bem o “novo normal” não é algo que se faz somente por “boa obediência”, mas sobretudo por um ato de “abstenção da reflexão”, de esquecimento do ato do pensamento. Logo, onde deveríamos valorizar o ato de consciência moral, Eichmann valorizava se autocompreender como um asceta cumpridor do dever. Com eficiência, ele “cumpriu as normas” e, de fato, enviou milhares de judeus para a morte. Sem negar sua “ética do dever”, Eichmann lembrou ao mundo que ele era humano: “eu não sou um monstro!”.
Um “homem comum”, tão comum quanto qualquer outro. Eichmann, claro, não está sozinho. Como ele, são muitos os “novos normais” no Brasil contemporâneo. Na aparência, não são figuras “sádicas”, “diabólicas” e “pervertidas” – apesar de estas figuras também existirem dentro desse grupo da zona franca do que vou chamar aqui de “abstenção reflexiva”. Sem esquecer o que minha interlocutora está me dizendo sobre esses tipos: “mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais” (Arendt, 1999, p. 299).
Com essas palavras, Arendt “abolia” as teorias explicativas de que haveria ali um sujeito social adoecido, assim como aquelas teorias que se davam o trabalho de afirmar uma ontologia do ser mal – sempre numa oposição radical ao ser “do bem”. Como aqui é um espaço de rede social, me permito admitir irritação toda que vejo pessoas se autodeclararem como “seres do bem”. Os modelos explicativos para esse ser banalizado do mal, servem em igual medida para esse ser banalizado do bem. Ambos têm em comum o fato de afirmar uma “normalização” e abdicar de uma reflexão aprofundada sobre seus atos, sobre a observação de uma situação, sobre a reificação da posição de mero agente reprodutor, condicionado e sem motivação aparente. Parecem esquecer que afirmar ser do bem não nos coloca automaticamente numa posição de superioridade moral. Com essa afirmação contínua, bastante compartilhada na esfera pública brasileira, encontramos muitos “eichmanns” por aí. Praticando e banalizando o mal travestido de bem. Mais, reproduzindo a mesma personalidade observada pela filósofa judia: “sua personalidade destacava-se unicamente por uma extraordinária superficialidade” (Arendt, 1993, p. 145).
Ora, mas o “monstro” não se avisa, não precisa ser um monstro para que ações tão normais deixem como resultados atos tão repugnantes e violentos. Afinal, Eichmann era descrito como “um homem bom, um pai de família, um filho exemplar e um irmão dedicado”. Arendt o resumiu como “um burocrata dócil e um assassino eficiente”. Foi assim que a máquina de matar em massa prosperou na Alemanha nazista. Não se apresentando como “ser do mal”, mas afirmando-se sempre e inequivocamente como “ser do bem”. Cujas características mais relevantes são sua “solicitude” e “dedicação” à causa ou à atividade exemplar em nome do “bem maior”. Pela ética do dever, Eichmann empurrou milhares de judeus em direção à morte. Equilibrando a boa reputação de homem dedicado com o assassino competente. Contra a imagem do monstro, Arendt concluiu se tratar de um homem comum, pessoa comum, porém “superficial” e “medíocre”.
De fato, o mal como um “vírus” se espalha na superfície, quando as pessoas se mostram inaptas para o exercício do pensamento, da reflexão crítica e uma avaliação moral sobre seus próprios atos e palavras. Mesmo sabendo que as consequências de suas ações – consideradas perfeitamente normais e eficientes – se mostram desastrosas. Logo, a característica da banalidade não é regularidade ou sua cotidianização, mas sua ideia preeminente de camuflar tão bem algo como comum. A banalidade do bem mora ao lado. Ela está na superficialidade de suas ações, concentra-se em se mostrar sempre como expansiva da “boa intenção”. Do “altruísmo” de salvar a nação, salvar os pobres, salvar as filhas de deus, salvar a economia, salvar os empregos, salvar, salvar, salvar… sal…var, sal…vá.
Mas o que me animou a escrever isto hoje foi a reflexão sobre o prejuízo de um contingente de pessoas que sustentam a “abstenção reflexiva”, o “vazio de reflexão”, a “mera reprodução sistemática” de suas ações. O que Arendt define como característica crucial sobre Eichmann é o fato dele jamais experimentar o exercício do pensamento, isto é, não é meramente o “ódio”, a “inveja” ou a “perversão”, mas a abstenção do ato de pensar. Assim, argumentava a filosofa ao dizer que quando nós abdicamos do ato de pensar, do exercício de reflexão sobre nossas próprias ações, quando não elaboramos moralmente um exame de nossas palavras ou ações estamos criando o ambiente moral mais comodo e seguro para a reprodução e produção de uma maldade que é tornada boa fé.
Não existe potencial nenhum em generalizações abusivas, por isso afirmava que Eichmann não era um ser distinto, pelo contrário o fato dele não exercitar o pensamento antes de conduzir suas ações o colocava na posição de um exemplo modelar do que significa o “especialista sem espírito” , termo de Max Weber. Como estou bastante inquieta sobre tal questão, vou encerrar meu comentário reforçando a importância de dizer três coisas: a) educar para o pensamento é diferente de condicionar para a servidão da concordância; b) na vida social nada é um fim em si mesmo e; c) a liberdade de uma pessoa é sempre negociável diante da precedência da vida de outra pessoa. No contexto macrossocial onde vivemos uma pandemia da Covid-19, o valor moral mais significativo para esta autora é, sem sombra de dúvida, a preservação da vida e não a liberdade para matar populações inteiras.
* As obras que ilustram o artigo são de autoria do pintor espanhol Pablo Picasso.