Pra Mendes Fradique nenhum botar defeito
Nesse mês de janeiro (que as pessoas trataram como um novo agosto, angustiadas por uma aceleração temporal digna de Insterestelar), tive um primeiro contato com a História do Brasil pelo método confuso, de Mendes Fradique, pseudônimo de José Madeira de Freitas (1893-1944). Foi publicado no período modernista, ao lado de autores como Murilo Mendes e os Andrades (Oswald e Mário). No prefácio à edição de 2004, Isabel Lustosa, organizadora da referida edição e pesquisadora da Fundação Casa Rui Barbosa (RJ), compara a trama do livro de Fradique ao Macunaíma de Mário de Andrade, embora ela comente que o autor tenha mais aversão do que simpatia pelo modernismo. O método confuso, segundo Lustosa observa (p. 16-17), advém da intenção satírica de Mendes Fradique não só quanto à história do Brasil, mas também quanto à transgressão às normas editoriais: “Da abertura ao fim, passando pelos falsos prefácios, notas e pela própria narrativas, tudo é humor” (p. 17). Ao mesmo tempo, a aparente falta de método é indício de um rigor metodológico absoluto – “(…) ao tentar ‘confundir’ o método, Mendes Fradique, metodicamente, não deixa de submeter nada à confusão” (p. 16), o que certamente dá à obra as aparências de uma gigantesca colcha de retalhos meticulosamente produzida. É, portanto, um livro desafiador, pela quantidade de referências históricas e trocadilhos temporais que o autor costura e que abrangem alusões a figuras da assim chamada “história universal” e personagens marcantes da época de sua publicação, em 1920.
Nos dez anos que se seguiram à primeira edição, Mendes Fradique desfrutou de relativo sucesso editorial – só a quinta edição (disponível para download aqui) foi publicada em 1923. Rico em sátiras de costumes, permeado por uma defesa elogiada da monarquia (contrabalançada pelo desdém ao regime republicano), o livro sacaneia com a proposta do então governo federal de apresentar a história do Brasil em livros didáticos, com o objetivo de instilar valores patrióticos na população. De didático, entretanto, a História do Brasil pelo método confuso não tem nada, antecipando em algumas décadas a ideia de Tom Jobim de que o Brasil não é para principiantes. Isso não deve ser encarado como uma queixa; pelo contrário, o fato de a leitura ser desafiadora deve ser considerado um estímulo à curiosidade do leitor – eu mesmo precisarei de algumas leituras pra me divertir mais com a obra. Após o envolvimento do autor com o integralismo, entretanto, sua obra caiu no esquecimento, e praticamente ninguém a menciona – ainda não conheci ninguém que tenha lido História do Brasil pelo método confuso ou outra obra de Mendes Fradique (1).
Enquanto lia, não pude deixar de me lembrar da conjuntura política recente no Brasil e perceber, a despeito do próprio Mendes Fradique (2) e do atual presidente, como Karl Marx tem razão com sua tese de que a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa. Ainda em janeiro deste ano, Bolsonaro soltou uma pilhéria, acusando os livros didáticos atuais de terem coisa demais escrita e serem lixo, além de incluir novamente o hino e a bandeira nacionais. E a gente pensando que já tava ruim só de permitir erros ortográficos e desobrigar a presença de referências bibliográficas…
O que Mendes Fradique diria dessas medidas? Não sei. Agora, se ele propôs o método confuso pra descrever a história do Brasil, que tal seria se eu arriscasse o mesmo com Bolsonaro? Prometo não reproduzir o procedimento de Mendes Fradique ao pé da letra, até porque Bolsonaro vem desempenhando esse papel com maestria. Vejamos então alguns indícios de como Bolsonaro está governando o Brasil segundo o método confuso.
A indicação de Ricardo Vélez e Ernesto Araújo por sugestão de Olavo de Carvalho (embora este, como de praxe com qualquer polêmica que envolva seu nome, insista em negar o feito). Depois de muita confusão (!!!) dentro do MEC, Vélez terminou sendo substituído por Weintraub. Ernesto Araújo continua nas Relações Exteriores, apoiando o plano de paz (sic) de Donald Trump para o conflito israelense-palestino.
Bolsonaro, em diversos momentos, conseguiu atrair dúvidas entre os próprios aliados. Basta ver as celeumas envolvendo Paulo Guedes e Sergio Moro – desobrigando o primeiro a ficar no ministério da Economia caso a reforma da Previdência não saísse, e uma série de atritos com o segundo, que pode culminar com a perda de popularidade de Bolsonaro e brecar sua reeleição, caso Moro se candidate à presidência (3). Guedes, por sua vez, não deixa a desejar – basta lembrarmos o bate-boca entre ele e Zeca Dirceu na Câmara dos Deputados. Sem falar de Hamilton Mourão, que colecionou um monte de declarações no mínimo contrastantes com a linha de Bolsonaro – este aqui disse, em abril do ano passado, que era só uma briga por quem lava a louça. Vai saber.
Colecionando críticas de ativistas ambientais pelo Brasil afora, Ricardo Salles, negacionista do aquecimento global e com um coro a aplaudi-lo (que publicou uma carta de apoio analisada e desmentida aqui), parece que gosta de apagar fogo com querosene. Tanto que afirmou que as queimadas da Amazônia em 2019 foram devidas à seca amazônica, e comparou, junto com Bolsonaro e Lorenzoni, as queimadas aqui com as da Austrália (leiam os links só pra vocês terem uma ideia da distorção e falseamento de informações que ele fez acerca do ocorrido). Sobre o vazamento de óleo no litoral nordestino, ele vazou pela tangente, sem dar maiores esclarecimentos. Para não ser injusto com o ministro, precisamos lembrar que Bolsonaro, no melhor espírito fradiqueano, cortou a solução pela raiz – desativou os comitês de contingência de incidentes com óleo em abril de 2019.
Damares Alves, a mestra bíblica em educação e direito – só viemos saber disso, é claro, depois que ela assumiu como ministra (rá!) – , defendeu uma paleta de cores (“meninas vestem rosa, meninos vestem azul”, lembram?), se definiu feminista a despeito de todos os atritos com as ativistas pelo mundo afora… Mas a grande pachorra foi ela encabeçar uma campanha pela abstinência sexual com foco nos adolescentes, ignorando evidências fortíssimas da falha dessa estratégia. A ministra defende que está preocupada com problemas como a gravidez precoce, mas se esqueceu de mencionar que esse problema não é resultado de sexo irresponsável, mas do abuso que as meninas sofrem. E a piada ruim não parou por aí: ontem, Bolsonaro, defendendo a campanha, afirmou que os portadores de HIV são despesa para todos. E na segunda-feira (03/02), a Confederação Nacional da Indústria protocolou uma ação pra contestar a regra trabalhista de conferir estabilidade de emprego a portadores do vírus. Se isso não for aquilo que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal, não sei o que é.
Educação e ciência também não foram poupadas do método confuso de Bolsonaro. O corte de bolsas decorrente do bloqueio orçamentário no MEC, a fuga de cérebros cada vez maior (sobretudo na área tecnológica, aparentemente tão valorizada por Bolsonaro), o uso de chocolates pra explicar o bloqueio orçamentário para justificar a retaliação à “balbúrdia” reinante nas principais responsáveis pela pesquisa científica do País – as universidades públicas -, um programa duvidoso de expansão da autonomia universitária que, veladamente ou não, pretende ampliar o financiamento das atividades universitárias na base da chantagem… Abraham Weintraub está mesmo judiando (foi mal) da educação brasileira e, pelo visto, de seu próprio passado – só checar a paráfrase de um discurso nazista na fala dele. Até agora falei mais da educação. O grande golpe que a ciência recebeu, entretanto, foi a nomeação em janeiro de um defensor do criacionismo para a presidência da CAPES. Benedito Guimarães, adepto do design inteligente (que é só um nome bonito para o criacionismo científico, como o pesquisador e divulgador científico Paulo Miranda Nascimento, o Pirula, explica neste vídeo), defende a “contraposição” do criacionismo ao evolucionismo (seja lá o que essa contraposição signifique) (4). Carl Sagan, astrofísico ateu, publicou uma coleção de ensaios um ano antes de sua morte em 96, O mundo assombrado pelos demônios, como um apelo para exorcizar (foi mal aê, Sagan) os demônios da ignorância e da superstição (sobretudo de pseudociências como o design inteligente) entre o público leigo. Deveríamos ver a nomeação de um defensor de uma pseudociência em um órgão científico como um pacto com o demônio?
Finalmente, mas não menos importante: o uso da expressão “marxismo cultural” parece doce na boca dos indivíduos indicados para os cargos políticos no atual governo. Fico pensando até que ponto eles sabem de onde veio a expressão ou se eles se fingem de doidos. Weintraub deu uma parafraseada “de leve” – estou usando essa expressão por falta de palavra melhor – em um discurso nazista. Mas Ricardo Alvim, ex-secretário de Cultura de Bolsonaro, conseguiu encenar o discurso de Paul Goebbels até os detalhes – o cenário, a trilha sonora, o discurso propriamente dito. E esse gesto deixa entrever uma contradição que reina entre os aliados de Bolsonaro. Ora, a direita usa o termo “marxismo cultural” com bastante frequência, especialmente depois que a direita conservadora americana popularizou o termo nos anos noventa. No entanto, a origem do termo é bem anterior, remontando ao “bolchevismo cultural” alardeado por Hitler em Mein Kampf – Iná Camargo Costa destrincha com detalhes como o líder nazista cunhou o termo e o inseriu em uma estratégia de ataque direcionada não somente a comunistas e judeus (para ele, eram basicamente a mesma coisa), mas também a setores de direita. E aí a confusão começa: é senso comum, entre muitos adeptos da direita (sejam eles liberais ou conservadores), a ideia de que nazismo e comunismo são ideologias de esquerda. Outro lugar comum é citar Hannah Arendt como heroína da liberdade, mencionando frequentemente obras como Origens do totalitarismo. Esse gesto (puxar Arendt pra brasa da direita) é no mínimo desonesto, porque ela criticou igualmente liberais e marxistas ao longo da vida – seu conceito de liberdade é muito distante do conceito de liberdade geralmente defendido em círculos liberais. Além disso, a própria Arendt (e não só ela) aponta o financiamento do partido nazista por empresários alemães (Hugo Boss, por exemplo, foi fornecedor de uniformes para o exército nazista após a ascensão de Hitler). Dito isso, eu pergunto: se o termo “marxismo cultural” nasceu no seio do nazismo, e se o nazismo é de esquerda, será que os usuários desse termo à direita deveriam ser considerados, para seu próprio horror, de esquerda? Se a resposta afirmativa, a nomeação de Bolsonaro e o teatro encenado por Alvim devem ser considerados gestos comicamente imprudentes.
No fim das contas, o método confuso com que Bolsonaro governa o Brasil é resultado de uma série de gestos que até podem agradar seu eleitorado, mas que põem a perder não só o que houve de avanço interno nos últimos quinze, dezessete anos, mas até a importância regional e internacional. A tendência a governar por decreto, o elogio velado ou não a torturadores em paralelo com o desrespeito a vítimas da ditadura de 64, o desrespeito seguido à Constituição (incluindo a nomeação de Ricardo Salles para a pasta de Meio Ambiente e o desejo frustrado de nomear o filho, Eduardo Bolsonaro, para a embaixada brasileira nos EUA), os repetidos choques com o Congresso, a compra da briga entre Estados Unidos e Irã após o assassinato de Qasim Soulemani – ignorando a recomendação de militares para que o País se mantenha neutro -, a recusa em ver os erros do último ENEM por estar de cabeça quente, o desprezo pelas relações multilaterais no Mercosul (nos últimos tempos, com a Argentina), a invasão (legitimada por decreto) de terras indígenas para atividade garimpeira (5), a sanha em liberar o porte de armas num país em que o contrabando de armas corre solto e a polícia que mais mata é a que mais morre – a colcha de retalhos do atual governo ainda vai demorar mais dois anos, quase três, para ser concluída. Vou precisar de mais outros quatro anos pra avaliar o atual momento – e não será nada divertido.
(1) Soube de Mendes Fradique nesta tese de doutorado de Breno Serafini, quando preparava minha dissertação sobre Millôr Fernandes (1923-2012), outro humorista recheado de referências enciclopédicas. Não foi difícil, portanto, despertar a curiosidade por Mendes Fradique. Uma das graças de uma obra literária, e de qualquer outra obra de arte, é fornecer algumas pistas ao público, a partir das quais é possível completar o quebra-cabeças com outras referências do próprio público. Dizem por aí que o almoço não vem de graça. História do Brasil pelo método confuso também não.
(2) Na década de 30, Mendes Fradique aderiu ao integralismo, tendo sido um de seus principais intelectuais, coordenando a divulgação jornalística do grupo. Seu principal adversário foi Apparício Torelly (1895-1971), o Barão de Itararé, também jornalista e humorista que militava pelo comunismo. Uma comparação da trajetória de ambos, presos na era Vargas por se levantarem politicamente contra ele, pode ser apreciada no ensaio de Cláudio Figueiredo, publicado em 2012 na Piauí. Se a gente continuar com a ideia marxiana acima, e avacalhar um pouquinho, poderíamos substituir o primeiro por Danilo Gentilli e o segundo por Gregório Duvivier. Pra ficar completa a comparação, só falta Gentili e Duvivier serem presos por criticar o governo Bolsonaro.
(3) Segundo Feliciano, Bolsonaro escolheu Moro para a chapa presidencial de 2022. Bolsonaro tá parecendo aqueles guris que botam crédito no fliperama e chamam um cara mais experiente que ele pra “ajudar” a zerar o jogo (experiência própria).
(4) Na verdade, não há nenhuma contraposição em jogo. O design inteligente pretende mesmo é suplantar o evolucionismo, adotando uma estratégia denominada de estratégia da cunha – baixar o machado no darwinismo para derrubá-lo. Enquanto a ciência se preocupa em testar uma hipótese, discuti-la entre os pares para só depois divulgar as descobertas na sociedade, a estratégia da cunha realiza o caminho oposto. Mais uma vez, consultem o vlog de Pirula pra entender melhor aqui.
(5) Onyx Lorenzoni complementou o anúncio de Bolsonaro afirmando que o texto só vai regulamentar o que já é feito ilegalmente, como uma Lei Áurea indígena. Sabemos bem o que aconteceu aos negros após a sanção da dita lei em 1888. Sabemos também o teor discursivo da afirmação do pokémon: o saque às terras indígenas agora será garantido pelo Estado.