O diretor Bong Joon-ho (O Hospedeiro, Expresso do Amanhã) coloca a luta de classes, presença latente em cada aspecto do nosso cotidiano (até nas cordialidades entre patrão e empregado que podem ocultar ressentimentos inconfessáveis), num experimento cinematográfico e social que flui da comédia ao terror numa montagem elegante que nos conduz a um clímax surpreendente. É uma mistura de sentimentos, que podem até ser conflitantes, mas nunca conduzidos de forma desastrada pelos realizadores, e de tons que são perfeitamente manipulados pelo diretor.
A luta de classes não é novidade na carreira de Bong Joon-ho. Ele já havia dirigido a adaptação de um quadrinho sobre o mesmo tema na ficção distópica Expresso do Amanhã. Aqui, em Parasita, ele conta a história de uma família pobre que penetra no círculo de uma família rica, retirando, a cada investida de um membro (a filha, o pai, a mãe), um obstáculo/empregado ou criando novas necessidades para a família endinheirada.
A família de Ki-taek (Song Kang-ho) se aproveita dos restos dessa civilização de contrastes, com o luxo e o lixo em cada ponta onde está amarrada a corda cuja a família tenta se equilibrar. É o sinal de internet do quase onipresente celular que eles tentam capturar dos vizinhos, é o fumacê que obriga toda a família a deixar a janela aberta para que a fumaça do inseticida mate os insetos da casa, já que eles não tem dinheiro para pagar uma dedetização. Porém, a pobreza não faz deles inocentes. Desempregados, eles não têm escrúpulos em sabotar o emprego de outros em benefício próprio. Embora, por um momento, eles se preocupem se tal empregado que, por intervenção deles perdeu o emprego, encontrou outro (seria a culpa batendo a porta? Uma consciência de classe que faz eles perceberem que, como os empregados anteriores, estão no mesmo barco?). Esse gradativo avanço dentro do seio da família abastada provoca um outro conflito bem comum nos dias de hoje de polarização política: a luta de uma classe contra a mesma classe, ou de pobres versos pobres. Algo que poderia ser considerado o maior triunfo do capitalismo, onde ricos assistem de camarote os pobres se digladiarem (ou por concorrência pela atenção e remuneração do senhor ou por defender seu político preferido) numa enorme arena enquanto os leões esperam devorar o que sobrar.
Existe no filme uma geografia simbólica, que ora se mostra como cenário ora como personagem, que coloca a família do patriarca Ki-taek morando abaixo do nível da rua, como insetos kafkianos que se escondem nos subterrâneos da sociedade, enquanto que a família rica mora numa casa situada numa rua elevada e imaculada. Há uma geografia privilegiada, onde o garoto da família rica arma sua barraca (comprada nos EUA, como parece gostar de lembrar uma personagem) no jardim durante a chuva, e uma geografia que exclui de direitos a uma moradia digna e que expõe a família pobre à água suja de uma inundação. Neste momento a filha encontra certo abrigo ao fumar um cigarro sujo sobre a privada – área mais elevada da casa de Ki-taek. É também ao redor da privada onde eles conseguem o melhor sinal de internet. E o celular é também, em dado momento, confundido como uma arma e que pode mostrar uma outra camada interpretativa sobre o tipo de sociedade que o diretor parece querer denunciar.
O filme parece mostrar o grande terror de uma classe privilegiada e sem empatia: a invasão dos seus “palácios” por aqueles que moram abaixo do seu nível econômico e social, da mesma forma que a água do esgoto tenta romper a tampa da privada onde a filha de Ki-taek está sentada. Não é por acaso que o pai da família rica sempre se refere ao motorista como alguém que quase ultrapassa o “limite”. Esse muro invisível que separa patrão e empregado, rico e pobre, senhor e escravo… E ainda há o cheiro, sentido pela criança mimada da família abastada, e depois pelo pai e pela mãe. O cheiro daqueles que pegam o metrô, como aponta e ingênua mulher rica. O cheiro que incomoda mesmo quando coisas muito mais relevantes e terríveis acontecem ao redor num momento crítico da narrativa. Os ricos, na sua ignorância pacífica, estão alheios a todo drama que passa seus “empregados”, alheios a toda tragédia que tal conflito constrói sob o piso lustroso do seu lar.
Direção: Bong Joon-ho
Elenco: Kang-Ho Song, Woo-sik Choi, Park So-Dam
País: Coreia do Sul
Ano de lançamento: 2019