I
Axel Honneth (filósofo e sociólogo alemão) em seu artigo “Barbarizações do conflito social: Lutas por reconhecimento ao início do século 21” (2014) nos dá indícios das mudanças e desdobramentos que a luta por reconhecimento enfrenta, bem como a crescente barbarização do conflito social no século 21. Neste artigo, o autor busca uma abordagem institucionalista para se pensar o reconhecimento na atualidade. Para isso, Talcott Parsons (sociólogo estadunidense e funcionalista) lhe serve como contribuição, mesmo que este não tenha desenvolvido uma teoria do reconhecimento em si, ele oferece marginalmente em sua obra, com a noção de sistemas e subsistemas, uma teoria social do reconhecimento, ou melhor, um complexo de reconhecimento, motivado pela busca de autorrespeito.
Segundo Honneth, Parsons concebia o conflito social como desacordos surgidos dentro de determinado sistema, como por exemplo o direito, economia e o subsistema da família, tais desacordos seriam gerados quando as normas e valores que servem como fontes morais de integração não vão de encontro aos interesses dos membros ou quando os mesmos se sentem prejudicados. Ou seja, os conflitos são gerados devido ao clima de insegurança normativa. Essa insegurança e conflito decorreria do não reconhecimento, mas tal reconhecimento poderia ser compensado com a família, a qual seria fonte de reconhecimento moral e emocional. O que Parsons não avançou, apesar de ter indicado caminhos, segundo Honneth, é ter levado em consideração as mudanças ocorridas dentro dos sistemas (tais como família, economia e direito, o modo como aparece no texto). As proposições de Parsons eram de que a economia e o direito cada vez mais se tornariam inclusivas, porém a família iria perdendo seu papel como compensadora do não reconhecimento em outras esferas.
O único ponto que, segundo Honneth, Parsons aponta na direção certa é a da família, pois segundo ele, a família hoje perde sua força, visto que a educação, segurança, não são mais dada pela família, mas sim por outras instituições. Na economia, temos cada vez mais um processo de exclusão devido as especializações, desigualdades e diferenciações dentro desse sistema, e a crescente incerteza que aflige grande maioria inserida no sistema, visto que o reconhecimento se dá através do status econômico. No direito, temos o desenvolvimento de uma lógica individualista, antes visto como meio de liberdade e autorrespeito de acordo com o seguimento das normas, o direito se torna hoje um meio de proteção individual contra o outro, as demandas coletivas perdem força, pois são vistas como advindas de interesses próprios, ou seja, ao invés de garantir a liberdade e inclusão, o direito se fecha e garante o afastamento do outro.
Visto isso, vemos então mudanças estruturais nas esferas institucionalizadas de reconhecimento, logo o reconhecimento no século XXI se torna mais restrito a um seleto grupo. É nessa negação do reconhecimento que entra a barbarização do conflito social. Diferentemente do que Parsons havia dito, de que o conflito ocorria dentro de esferas fechadas, percebemos hoje, principalmente com as atualizações desenvolvidas por Axel Honneth, que o conflito extrapola os sistemas.
O fechamento das “portas” para o reconhecimento impede a inserção do indivíduo em um consenso valorativo generalizado que lhe serviria como guia moral de suas ações, tal como, por exemplo, na economia, no direito e na família. Portanto, o muro que parece surgir nas esferas de reconhecimento recíproco coloca os indivíduos numa posição marginal na luta por reconhecimento. Com isso, surge o bárbaro, um conflito social não guiado por reconhecimento, mas por um meio alternativo de autoafirmação.
Axel Honneth nos mostra com esta pequena reflexão, que a luta por reconhecimento no século XXI, perde seus fundamentos morais e se transforma em um conflito descontrolado, endêmico a ponto de uma anomia do conflito social.
II
Pois bem, não poderia deixar de relacionar teoria à prática, melhor ainda se for para se pensar o Brasil, no qual um crescimento acelerado do conflito social e da barbárie aflige o país. No Brasil, a brutal desigualdade fecha as portas para toda uma classe social, desamparada, em que o Estado só chega quando é para matar ou negar cada vez mais o reconhecimento; na esfera econômica, o desemprego que assola a população, principalmente os negros e os mais pobres, impede uma inclusão dos mesmos na economia. Percebam que as portas do reconhecimento são negadas para tais pessoas, o reconhecimento familiar se encontra como a única barreira compensatória para o reconhecimento, mas e quando essa última barreira compensatória é negada?
A resposta é simples: conflito, violência e busca por autoafirmação, no Brasil, toda uma classe tem seu reconhecimento negado, ou seja, temos um fenômeno de massa que exclui toda uma classe, seus direitos, sua cultura. Vemos isso no livro “A ralé brasileira” (2018) e “Construção social da subcidadania” de Jessé Souza, onde temos uma população que anda numa linha tênue entre a criminalidade ou a imoral aceitação de sua condição social e baixa autoestima, causando uma paralisia e impossibilitando a ascensão social.
A todos a quem o reconhecimento é negado e buscam de alguma outra forma se auto afirmar, vão buscar outro meio que não seja as instituições, cujas portas de reconhecimento foram negadas desde a infância. Temos então, na sociedade brasileira o cidadão e o subcidadão; no primeiro, o reconhecimento recíproco é obtido visto as suas condutas e valores que seguem as normas; noutro o fato de não se identificar ou não ter condições de agir de acordo com os valores e normas instituídas e generalizadas, seu reconhecimento é negado. Essa cisão é o que, seguindo a argumentação de Axel Honneth no texto a cima, provocaria um conflito social da ordem da barbárie, pois esses que se encontram sem nenhum amparo, não iram se guiar por normas e valores generalizados, mas sim por seus próprios interesses que lhe permita se auto afirmar.
No atual Governo de Jair Bolsonaro, não encontramos nenhuma perspectivas de amenização do conflito social, visto que ele e suas medidas toscas, estão, na verdade, aumentando a barbarização da sociedade brasileira, fechando cada vez mais o reconhecimento a um grupo diminuto, que consegue se inserir na economia, no direito e ter uma família capaz de fornecer o necessário para reprodução de valores. Os excluídos não têm em seu horizonte outro meio que não seja maneiras marginais de atuação na sociedade.
Esta pequena tentativa de reflexão serve para pensarmos o rumo que a sociedade brasileira está tomando, um conflito social endêmico, beirando a anomia, onde a barbárie se torna naturalizada.