Alipio De Sousa Filho,
Diretor do Instituto Humanitas/UFRN. Pesquisador do CNPq.
O filósofo Byung-Chul Han tem dito que estamos vivendo em sociedades nas quais domina o ideal patológico da “mesmidade”, ideal de dominância do “meu igual”, sem a negatividade da alteridade, isto é, sem a presença de um outro atópico, estranho, diferente. Um ideal (eu acrescento: uma ideologia) capaz de fazer que a compulsão à mesmidade apavore-se sempre que o outro (inesperado) dê o ar da graça de sua presença. Apavorada com o outro, a mesmidade teme nele o seu fim, sua ruína, como se, dirá o filósofo, na atopia do completamente outro, anunciara-se seu “apocalipse”.
A leitura que agora faço do filósofo coreano-alemão (uma descoberta proporcionada por uma amiga) e a observação do que tenho à minha volta (nosso país, nossa sociedade e a Universidade, que é meu ambiente de trabalho) têm me levado a pensar que, entre outras, a prática de um tipo de silêncio (e sua imposição) talvez seja a técnica principal para a produção dessa patologia da mesmidade sem alteridade, denunciada pelo autor (que não sei se já escreveu sobre o assunto): o silêncio oportunista, praticado por muitos em diversos espaços sociais e instituições. Esse silêncio não é nenhuma virtude, ele é uma não-virtude. Não se trata do bom silêncio, o dos sábios, o das mentes reflexivas. O silêncio oportunista é pura servidão a interesses inconfessáveis, mas igualmente é uma política: aquela que visa subordinar a todos à lógica geral da sujeição, que não se sustenta senão à base do silenciamento de toda palavra discordante, estigmatizada como “encalmadiça” (diz-se também “acalorada”) ou “balbúrdia”.
No desejo patológico do apenas “meu igual”, sem o outro diferente, sem a negatividade (hegeliana) da diferença – desejo daqueles que somente sabem viver no charco do seu narcisismo doentio, sem lugar para o outro; este totalmente erodido em qualquer horizonte do onipotente eu –, a técnica (ou tática) do silêncio é a forma mesma da invalidação do debate (público) de ideias cujos efeitos e resultados não já estejam previamente controlados. O silêncio é para evitar, no progresso do debate, o risco da novidade (negatividade) que ameace à reprodução do mesmo, do igual. Silêncio reprodutivista, ele é o silêncio dos oportunistas porque estes, como “iguais”, estão sempre à espera da oportunidade ou “chance” de ser convocados a participarem de alguma colaboração: sim, colaboração, com a manutenção do status quo, do instituído, sem que representem alguma ameaça de modificação, transformação, substituição da realidade existente.
O silêncio oportunista é o dos calados do mundo. Estes são como aquelas criaturas do poema de Arthur Rimbaud, o poeta francês amante de outro poeta, o Paul Verlaine, “Les assis”: corpos inativos, imobilistas, apegados às tradições, conservadores. Rimbaud, em sua fúria poética, não deixou de manifestar o seu desprezo pelos “sentados”. Como os sentados de Rimbaud, os calados do silêncio oportunista são os tipos do mundo que contribuem (em seus apegos às tradições, à repetição do mesmo e do igual) para que a realidade não mude, nada mude na realidade do mundo. São tipos conscientes de sua contribuição à reprodução da realidade tal como esta existe. Nada fazem para que a menor coisa do mundo (e do mundo perto) seja modificada, substituída. Mesmo quando sabem que aquilo que ajudam a reproduzir representa exclusão, marginalização, discriminação, e, por isso, reprodução de dispositivos e práticas de manutenção de desigualdades injustificáveis e imposição de sofrimento humano evitável.
Direi aqui: são também os mais perigosos. Eles são os que servem a qualquer poder. E por isso são os primeiros procurados pelos poderes totalitários, em todos os regimes totalitários, para colaborarem. Colaboram entregando a esses poderes e regimes todos aqueles e aquelas que não lhes parecem úteis (ou ameaças) a seus objetivos. Os calados são os mais perfeitos colaboradores dos sistemas de violência e opressão que se implantam no mundo, ainda quando disfarçados de “democracia”. E eles também são cínicos, tão e o suficiente que, quanto mais falam em nome da “verdade”, mais mentem.
Os calados do silêncio oportunista, compulsivos pela mesmidade sem alteridade, nos seus lugares de trabalho, em geral, atuam para impedir o progresso de tudo que (na sua mesquinharia patológica, egocêntrica e narcisista) lhes parece “competição”, “disputa”, “concorrência”, pelo medo da novidade, da gênese e do progresso da diferença, do outro, como se a disposição moral e psicológica, com a qual vivem no mundo e para as relações com o outro, estivesse pautada pelo tosco instinto animal de sobrevivência. Aliás, pelo que se pode verificar, é custoso acreditar que alguns tenham mesmo desenvolvido uma das capacidades elementares de todas as espécies animais que é reconhecer o outro de sua espécie, seu semelhante, não como um concorrente, mas como um parceiro colaborativo. Diferentemente do que corre no senso comum, são raras as espécies animais que seus membros atacam-se entre si. E, se humanos, mais raro ainda, por razões que, da filosofia à psicanálise, passando pela antropologia e sociologia, já se chamou de atitude de reconhecimento do outro na convivência humana interativa, malgrado o impulso agressivo não deixar de fazer os seus estragos. Ao que parece, todavia, alguns tipos humanos não chegaram nem mesmo ao nível animal mais elementar da colaboração, e, da humana, mais longe ainda.
O silêncio dos calados oportunistas, amantes patológicos da conservação da tradição (“todo mundo faz assim”, “mas não pode ser diferente”, “vamos deixar assim”, “é… vamos ver se pode ser…”, “mas não é legal ficar diferente do que já existe”, “ninguém vai entender….”) é não apenas contributo à reprodução social, reificação e eternização do existente, é também um ato em desfavor da interação humana para a simetria na participação social. Os que tremem diante da negatividade da alteridade também acreditam que só os “iguais” têm o direito, e devem ter o poder, de tudo definir, tudo fazer. Eles são não apenas conservadores mas também autoritários. Alguns são fascistas, mas, que saibam ou não, não nos impedem de sonhar, como outro filósofo sonhou, com: “por uma vida não-fascista” (Michel Foucault).
Dito isso, só resta perguntar: em qualquer idade e época, não será sempre o caso de nos deixar embriagar do poeta, que, em sua juventude, inquieto, amante intenso, lançou seus versos como um convite a que nos “sentemos menos” e levantemo-nos mais, inventando, criando, construindo realidades novas, inesperadas?
Ces vieillards ont toujours fait tresse avec leurs sièges ….
Oh ! ne les faites pas lever ! C’est le naufrage…
Ils surgissent, grondant comme des chats giflés