Tratava-se de um dos meus últimos dias em São Paulo e, como era de se esperar, dez dias não foram suficientes para conhecê-la. Havia um local que eu ainda não tinha conhecido, embora tivesse planejado fazê-lo. Decidi, então, sacrificar o horário do almoço, pegar a linha amarela na Estação Fradique Coutinho e ir até à Estação da Luz, eternizada no samba triste de Tom Zé, o marginal tropicalista. Tentando entender a poesia concreta da Estação, por ali permaneci alguns pouquíssimos minutos – nada entendi, assim como Caetano, e fui embora para o meu destino final: o Memorial da Resistência, museu que conta a história de repressão e resistência no Brasil dito republicano.
Logo nos primeiros vãos, lê-se em letras imponentes: lembrar é resistir. Talvez mais do que nunca, tal asserção demonstre sua validade. Em nossa história recente, parece-me que estamos vivendo o período onde se há menos vergonha em admitir valores antidemocráticos, misóginos, racistas etc. Nesta conjuntura, ao lembrar, resistimos, pois assim não deixamos o terreno livre para os canalhas que relativizam os crimes da ditadura ganharem espaço na esfera pública.
Mas é necessário demarcar algo com precisão: parcela considerável dos poucos sujeitos que hoje defendem a ditadura não o fazem por um lapso cognitivo, mas sim porquê estão expressamente colocados do lado oposto ao da democracia. O que define esses dois lados não é algo que figura na dimensão do acesso ao conhecimento, mas sim na dimensão dos valores. Neste sentido, livros de história não são o antídoto para esses sujeitos, tampouco se sensibilizam com os relatos dos(as) torturados(as), pois lhes falta o mínimo de respeito à vida daqueles que pensam diferente.
Viver é um ato político. E política é luta, disputa, jogo de forças. Nesse momento, portanto, que disputemos os significados da ditadura civil-militar que operou no Brasil entre 1964 e 1985, violando expressamente toda gama de direitos civis e políticos: torturando, exilando, matando, cassando, censurando, perseguindo, estuprando. Hoje, há quem relativize esses crimes e defenda o regime sangrento iniciado em 1º de abril de 1964 – sim, oficialmente, o regime civil-militar tem início no dia da mentira, escancarando a farsa do golpe.
Portanto, se tal debate está colocado, que não nos furtemos de enfrentar as ideias dos saudosistas de 1964 e cortar o mal pela raiz, antes que ele consiga coro. Afinal, não faltam indícios de que, como nação, o Brasil tem uma péssima memória: aqui, por exemplo, nega-se o racismo estrutural contra as populações negra e indígena, massacradas no passado e no presente. Os últimos meses também não deixam dúvidas: o que há de mais intolerante e retrógrado no debate público parece seduzir uma parcela significativa da população. Sendo assim, é prudente estar com o pé atrás e nunca subestimar ideias que parecem absurdas, como a louvação ao golpe de 1964.
Definitivamente, quem carrega consigo o mínimo de humanidade e compromisso com a história, não poderá afirmar que houve, durante o regime civil-militar, algo a ser comemorado. No máximo, temos brilhantes músicas de protesto e algumas situações das quais podemos dar boas risadas hoje, como o episódio em que um conjunto de militares, ao vasculhar a biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda, decidiu apreender os livros sobre cubismo, pois para eles se tratavam não de obras sobre um movimento artístico, mas de escritos sobre a Revolução de 1959. Ou, ainda, a história de um militante anarquista baiano que, ao ser detido e questionado sobre qual a diferença entre o PCdoB e o PCB, respondeu se tratar da preposição. Bem, talvez a estupidez dos militares e a ousadia dos que se fizeram de aço para enfrentar os anos de chumbo possam ser festejadas, mas além disso, não há nada o que se comemorar.