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Comemorar ditadura ou democracia?

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Homero Costa

 

No dia 25 de março de 2019, o porta-voz da Presidência, general Otávio Rêgo Barros, afirmou que o presidente da República determinou ao Ministério da Defesa que sejam feitas comemorações em unidades militares em referência a 31 de março de 1964. Houve esperada e imediata a repercussão. Dos que defendem o governo e a ditadura e acham que houve “uma revolução democrática”, o esperado apoio e para a oposição, um acinte porque não houve nem uma coisa nem outra: nem Revolução e nem democracia e sim um golpe que deu início a uma ditadura que durou 21 anos, um período de exceção, marcado por censura, torturas a adversários políticos, cassação de direitos e, em alguns momentos, o fechamento do Congresso Nacional, sem eleições diretas para presidentes da República, o que só foi retomada em 1989.

Em relação à data, ainda no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, foi retirada do calendário oficial de comemorações das Forças Armadas. E agora, ao que parece, com a vitória de Bolsonaro, se avalia o 31 de março no calendário oficial de comemorações. O Presidente, num momento de crise política, queda de popularidade e de dificuldades no Congresso Nacional para se aprovar reformas, em especial a da previdência, ao que parece, foi convencido pela cúpula militar que talvez seja mais sensato que as celebrações sejam feitas de maneira discreta, sem manifestações públicas, ou seja, dentro de quartéis, com a leitura da ordem do dia.

No dia seguinte, 26 de março de 2019, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, divulgou uma nota assinada pelos procuradores federais Deborah Duprat, Domingos Sávio Dresch da Silveira, Marlon Weichert e Eugênia Augusta Gonzaga, na qual repudia a orientação dada pelo presidente para que os quartéis celebrem a data e afirmam que houve um “rompimento violento e antidemocrático da ordem constitucional”, e a instauração de um regime caracterizado por restrições a direitos fundamentais dos cidadãos e repressão sistemática à dissidência política, que incluiu opositores na imprensa, sindicatos, partidos, movimentos sociais, etc.

Segundo a nota, há no ato uma “enorme gravidade constitucional” e um desrespeito ao estado democrático de direito e o uso de estrutura pública para defender um golpe “Transcorridos 34 anos do fim da ditadura, diversas investigações e pesquisas sobre o período foram realizadas. A mais importante de todas foi à conduzida pela Comissão Nacional da Verdade, CNV, que funcionou no período de 2012 a 2014. A CNV foi instituída por lei e seu relatório representa a versão oficial do Estado brasileiro sobre os acontecimentos. Juridicamente, nenhuma autoridade pública, sem fundamentos sólidos e transparentes, pode investir contra as conclusões da CNV, dado o seu caráter oficial. A CNV confirmou que o Estado ditatorial brasileiro praticou graves violações aos direitos humanos que se qualificam como crimes contra a humanidade”.

A nota ainda informa que órgãos de repressão assassinaram ou desapareceram 434 suspeitos e mais de oito mil indígenas, afora as milhares de pessoas que foram presas ilicitamente e que alguns foram torturados.

“Esses crimes bárbaros (execução sumária, desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas, torturas e violações sexuais) foram perpetrados de modo sistemático e como meio de perseguição social. Não foram excessos ou abusos cometidos por alguns insubordinados, mas sim uma política de governo, decidida nos mais altos escalões militares, inclusive com a participação dos presidentes da República. A gravidade desses fatos é de clareza solar”.

Nesse sentido, “Festejar a ditadura é, portanto, festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos. Essa iniciativa soa como apologia à prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo das repercussões jurídicas”.

No outro dia, 27 de março de 2019, o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, criticou a comemoração do que considera como” o golpe de 31 de março de 1964”.

Para ele, “comemorar a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa é querer dirigir olhando para o retrovisor, mirando uma estrada tenebrosa”. E que “Não podemos dividir ainda mais uma nação já fraturada” e indaga: “A quem pode interessar celebrar um regime que mutilou pessoas, desapareceu com seus inimigos, separou famílias, torturou tantos brasileiros e brasileiras, inclusive mulheres grávidas? Não podemos permitir que os ódios do passado envenenem o presente, destruindo o futuro”.

Nesse momento, talvez seja pertinente fazer referência a um livro publicado em 2012, pelo búlgaro Tzvetan Todorov “Os inimigos íntimos da democracia” (Companhia das Letras). É uma reflexão sobre a democracia e um alerta para os perigos enfrentados pelos regimes democráticos e afirma que a democracia está doente e um aspecto relevante desse processo é que o povo se transforma em massa manipulável e que “a economia, o estado e o direito deixam de serem meios destinados ao florescimento de todos e participam agora de um processo de desumanização”.

No entanto, salienta, viver em uma democracia continua sendo preferível a uma ditadura. Para ele, a democracia tem sido corroída por seus inimigos íntimos e indaga se ela está à altura de suas promessas. O perigo, alerta, é que seus inimigos têm agora uma aparência menos assustadoras do que as de ontem, que a atacavam de fora, mas agora usam os trajes da democracia para atacá-la por dentro e isso não pode e nem deve passar despercebido, mas também nem por isso deixam de representar uma grande ameaça: se não lhe for oposta nenhuma resistência, um dia eles acabarão por esvaziar esse regime político de sua substância. E, como ele diz “conduzirão a um desapossamento dos seres e a uma desumanização de suas vidas”. Esse é um perigo das ditaduras e por isso devemos repudiar e poder comemorar, não ditaduras, mas os avanços da democracia.