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A Linguagem do Poder

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Por Dani Fagno – Cientista Social e mestrando em Filosofia pelo PPGFIL- UFRN

 

Que há uma relação entre linguagem e poder é algo que está fora de questionamentos. Para um rápido atestado da veracidade desta afirmativa basta um vôo panorâmico sobre a história da filosofia: desde os sofistas a questão do uso da linguagem vem ao centro do debate sobre o poder; a Igreja, apoiada pelos escolásticos, guardou pra si o privilégio de entender a “linguagem de Deus” e tomou a exclusividade para a interpretação dos textos sagrados; com o início da Idade Moderna, Francis Bacon tratou de afirmar que “saber é poder”; Karl Marx atacou a superestrutura como uma desavergonhada legitimadora do poder burguês; por fim, a virada linguística, com Ludwig Wittgenstein, vai tornar claro os jogos de poderes engendrados pelo uso da linguagem.

Se tudo isso não faz sentido para alguém mais cético quanto a verificabilidade das filosofias citadas, o trabalho de Maurice Godelier publicado no número 28 das Communications da École Pratique des Hautes Études de Paris vem dar um argumento antropológico em favor dessa tese: em Linguagem e Poder, estudando os Baruya de Nova Guiné, traz a questão da dominação masculina gerida por rituais que desautorizavam as mulheres da tribo a aprender e usar o dialeto tribal em que era transmitido os segredos da tribo, sob pena de morte.

Negar o poder por meio da negação do potencial de inserção na língua é, então, uma tática antiga e que perdura até os dias de hoje, como lembrou Roland Barthes ainda em 1977, quando de seu discurso de posse no Còllege de France; estamos fatalmente condicionados a uma hierarquia inscrita na capacidade de uso da língua, da navegação pelos seus meandros e sutilezas. Se o famoso linguista francês Ferdinand de Saussure já apontava uma saída junto a literatura, Barthes coloca essa fuga da estrutura fascista da língua como uma capacidade geradora de um grau indispensável de liberdade. John L. Austin dá cabo a essa discussão filosófica dizendo que a língua, performática que é, faz ser ao mesmo tempo.

Um último argumento quanto ao que se afirma aqui: os diários de Victor Klemperer, que pode ser lido em LTI: A Linguagem do Terceiro Império. Ali, impedido de ser integralmente um cidadão alemão pela campanha do Terceiro Reich, Klemperer encontra na sua escrita uma maneira de manter a sanidade e a humanidade judaica em meio a enxurrada de ataques, grosseiros e sutis, que lhe impôs a condição de perseguido pelos nazistas. Se, explicitamente, havia o discurso oficial acerca da superioridade da raça ariana, Klemperer deixa claro como este discurso operou sutilmente no imaginário dos cidadãos comuns, que não mereciam a substancial pecha de racistas, mas que foram cooptados pela mescla de medo do passado, insegurança no presente e promessas para o futuro presentes nas propagandas do regime que ressoava pelas vozes dos fiéis hitleristas.

No Brasil, não escapamos também dos estragos que ideologias montadas sobre o poder dos discursos puderam fazer; estamos falando ainda do passado, de um regime civil-militar que perdurou três décadas e ainda se faz sentir no coração, mentes e bocas dos que o viveram. Os que sofreram na pele as mazelas desse sombrio período –  como Klemperer – se opõe a qualquer continuidade linguístico-ideológica, e brigam com os saudosistas da condição de controle e repressão que reinou no Brasil durante a “Revolução de 64”. A polêmica, que de polêmica não se sustenta por muito tempo, sobre o uso de Revolução ou Golpe é, marcadamente, uma grande disputa de narrativas que compete para o tema sobre o qual escrevemos agora. O simples nomeamento dos fatos históricos ocorridos em abril de 1964 (ou maio de 1964, dependendo de que lado da história você resolveu se colocar) já indica o poder da linguagem sobre a conformação das psicologias das massas bovinas envolvidas.

Nos dias de hoje, nas eleições presidenciáveis que abalaram e ainda abalam o Brasil, temos outra grande demonstração de como esse aspecto da linguagem pode consagrar uma determinada visão de mundo. Me refiro não só à execrável campanha de um dos candidatos, retomando slogans dos tempos dos generais, mas também à sua contrapartida, que não encontra grande diferença quanto ao sentido que ressaltamos, da dominação dos intelectos por meio do capcioso uso da linguagem; se, à direita, funcionou o velho “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, capaz de provocar vômito nos mais sensíveis, do outro lado, as peças publicitárias de campanha que personalizavam todos sobre uma só imagem, a do candidato impedido de participar das eleições, acusado de corrupção e preso sob condições duvidosas, não ficava muito atrás na capacidade de gerar reviravoltas nas tripas dos que não suportam reduções deste tipo: a manipulação política pelos discursos foi servida como prato do dia.

Uma nefasta orquestração de judicializações se seguiram, os dois lados muito bem entendidos da capacidade de engendramento de massas conformes que estes argumentos, mesmo que desonestos politicamente, poderiam movimentar em seu favor; combateram as artimanhas adversárias tanto quanto engrossavam o alcance das suas próprias. O que se ouviu, de lado a lado, foi a total empáfia da redução das pluralidades a um só discurso: o discurso que obriga a estar sobre uma deidade, entidade soteriológica, toda a esperança de uma diversa nação de mais de 200 milhões de habitantes nos lábios sórdidas de figuras que manipulam seu discurso em prol da conservação de poderes políticos que pouco se importam com essas esperanças.

Hoje, o sentimento é de extrema morbidade, de se estar sob “Deus” e “Brasil”, apesar de a alternativa de “sermos todos um” não imprimisse em alguns corações uma expectativa muito melhor. O uso das metonímias, que marcou as eleições presidenciáveis no Brasil de 2018, recuperam a pertinência da relação entre linguagem e poder e nos torna aptos a sentir, com Klemperer, tudo o que os discursos engendraram nos corações alemães do Terceiro Reich, sejam eles arianos ou judeus, e nos faz pensar: o que será dos anos 20?