Infelizmente, a tragédia que as pesquisas de intenção de votos anunciavam desde o início do segundo turno se confirmou na noite de domingo e a esperada virada de Haddad não chegou. O autoritário e despreparado Jair Bolsonaro venceu as eleições e, ao que tudo indica, irá assumir a cadeira presidencial em 2019, ao lado do eugênico Mourão. Sua vitória representa o avanço de uma série de violações de direitos e atrocidades contra minorias políticas, tanto porque faz crer que o discurso de ódio defendido por tantos tornou-se legitimado quanto por colocar como chefe do poder Executivo Federal a figura pública mais autoritária que o Brasil já conheceu desde a redemocratização. Os últimos meses, com uma série de ataques a militantes, assassinatos por motivação política, ameaças proferidas pelo candidato do PSL a seus opositores em um futuro governo e tentativas de cercear o livre pensar nas Universidades foi apenas uma amostra do que está por vir.
Contudo, vale lembrar que, embora o dia 28/10 tenha cravado a vitória do candidato do PSL com cerca de 57,8 milhões de votos, o que, de fato, representa grandes perdas para a vida social e política do país, este mesmo dia também representa que cerca de 47,04 milhões de eleitores votaram contra o projeto fascista. Não estamos sós! Não é hora de recuar! Caso a candidatura que defende a democracia tivesse ganho, estaríamos no momento de fortalecer a luta política, de continuar ocupando as ruas para barrar a ofensiva golpista que certamente viria a questionar o resultado das urnas. Agora, igualmente, é momento de ocupar as ruas, de fortalecer os coletivos estudantis, de trabalhadoras e trabalhadores, de construir resistência. O que a história reserva aos brasileiros e brasileiras demandará de nós uma profunda organização e mobilização social para que possamos resistir.
Não é de hoje que a imagem do Partido dos Trabalhadores (PT) se encontra no centro de um profundo desgaste. Contudo, vale salientar que esse desgaste não é apenas fruto dos próprios erros do Partido, como sua conivência aos joguetes políticos do presidencialismo de coalizão, mas obra, sobretudo, de uma intensa campanha de demonização do Partido, encabeçada por setores midiáticos golpistas e que dura, no mínimo, quatro anos. Nesse contexto, de avanço da crise econômica mundial, demonização da política e, em específico, do Partido dos Trabalhadores, Bolsonaro e sua quadrilha, de forma oportunista, se aproveitam do cenário de desesperança com a política e tomam como principais cabos eleitorais o antipetismo e a proposição de saídas fáceis para questões complexas que permeiam o cotidiano dos vários setores da classe trabalhadora.
Aplacou como proposta a defesa da família e para isso, contou com o apoio de influentes líderes religiosos para criar um fictício cenário de ameaça da família, representado em torno do também fictício kit gay. Ainda como elemento constitutivo do discurso bolsonariano está o cínico enfrentamento à corrupção, da qual ele próprio e seu partido compactuam, como indicam os episódios envolvendo a funcionária fantasma de Angra dos Reis, a propina recebida da JBS e a recente denúncia de Caixa 2 envolvendo sua campanha. E, respondendo a um imaginário social que confunde punição com justiça, Bolsonaro angariou muitos votos com a falsa promessa de que suas políticas de ”Lei e Ordem” – como redução da idade penal, militarização das periferias e endurecimento penal – e a autorização do faroeste urbano através da legalização do porte de armas podem, em alguma medida, reduzir a criminalidade e não, ao contrário, retroalimentá-la, como demonstra a experiência histórica. Para dar vazão às suas mentiras, hackeou a democracia à la Steve Bannon através de um corrupto esquema financiado por empresários e, por meio de grupos de mensagens instantâneas, disseminou um conjunto de falácias que criavam um cenário apocalíptico no qual, posteriormente, o candidato com nome e postura de Messias, dizia poder resolvê-lo.
O que, imagino, não ficou evidente – por mais explícito que isso pudesse estar para alguns – para parcela substancial do eleitorado de Bolsonaro é que, por detrás de todas as ilusões e falsas promessas que o candidato do PSL utilizou para angariar votos, encontra-se um projeto ultraliberal com duras consequências para os trabalhadores e trabalhadoras. Não creio que, mesmo com todo o processo de demonização do Estado que a grande mídia protagonizou nas últimas décadas, um projeto neoliberal que se apresentasse de forma escancarada para todo o eleitorado pudesse derrotar um projeto social-democrata na eleição presidencial. Aliás, não creio que haja apenas um fator determinante que explique a vitória de Jair Bolsonaro, mas sim um complexo arranjo permeado por várias circunstâncias que permitiram a ascensão de um candidato medíocre, do baixo clero da Câmara dos Deputados, à Presidência da República.
Dentre os fatores que contribuíram para isso, a prisão arbitrária e impedimento do ex-presidente Lula – figura política maior que o próprio PT e indicado como preferido nas pesquisas de intenção de voto durante o primeiro turno – de disputar as eleições presidenciais, certamente merece destaque. Na sequência, a revolta – legítima, diga-se de passagem – com as condições de vida concretas, mas despejadas nas costas do PT com o auxílio de fake news e de uma leitura social personalista acerca do sistema político. A defesa de valores morais do século XVII, fortalecida por setores fundamentalistas ligados às Igrejas. O apoio de uma classe média mesquinha e de amplos setores da burguesia que, sem uma opção viável em partidos como PMDB e PSDB, se entusiasmaram com o programa econômico ultraliberal de Paulo Guedes e optaram por jogar a democracia na lata do lixo e apoiar a candidatura de Bolsonaro. A facada, é verdade, não lhe rendeu pontos apenas na barriga: as semanas subsequentes ao incidente registraram o aumento de alguns pontos percentuais na disputa presidencial. E, certamente, o espírito antipetista instalado na nação por setores golpistas ao longo dos últimos anos e aproveitado por Bolsonaro.
Sobre o último ponto, cabe destacar que havia uma imensa parcela de candidatos que encorpavam o antipetismo. Tirando Ciro Gomes e Guilherme Boulos, todos os outros candidatos declaravam abertamente uma postura antipetista à direita. Mas ainda assim, diante de todas as opções, o escolhido foi Bolsonaro. Tal circunstância me leva a crer que, os eleitores do candidato do PSL, mesmo aqueles que não se envolveram em uma campanha de propaganda lunática e que são incapazes de com as próprias mãos agredir alguém, fizeram uma opção pelo neofascismo. Talvez de forma consciente, talvez de forma ingênua. Mas fizeram. É provável que aquilo que mais cause aos democratas uma profunda repulsa no discurso de Bolsonaro – o racismo, a homofobia, a misoginia – resida justamente no fundamento do seu carisma com fatia tão larga do eleitorado. De fato, não gostam de casais homoafetivos andando de mãos dadas nas ruas, acham que políticas de ação afirmativa para a população negra são completamente desnecessárias, que o Bolsa Família sustenta muito vagabundo e que as pautas feministas são ofensivas. Talvez não agridam com as próprias mãos alguém homoafetivo, negro ou do sexo feminino, mas defendem políticas e ideias que matam essas pessoas, que as desumanizam. Ao seguirem suas ideações preconceituosas e votarem em Jair Bolsonaro, mal sabem eles que estão, também, dando um tiro no próprio pé. Ou na parte dorsal do crânio.
Conforme escreveu Durval Muniz de Albuquerque Júnior, prefaciando o livro ”A teoria da dependência: do nacional-desenvolvimentismo ao neoliberalismo” de Claudia Wasserman, “se a derrota é uma ruptura, que aprendamos com a história que é das rupturas que nascem as mudanças, as transformações”. É então, que neste momento de profunda derrota para as esquerdas e todo o campo democrático, “de nada adianta chorar pelas batalhas perdidas, o que importa é aprender com elas”. É tempo de autocrítica, de reflexão e de assumir, inclusive, os próprios erros que contribuíram com a conjuntura que experienciamos hoje. Não é preciso ser nenhum profeta ou gênio para saber que as mesmas massas que nos últimos meses apoiaram a candidatura e agora comemoram a vitória de Jair Bolsonaro serão traídas pelas falsas promessas e ilusões cultivadas pela narrativa do impostor que se apresenta como um “político antissistema” mas que carrega consigo o que há de mais podre na política brasileira. Quando isso acontecer, onde nós, do campo democrático, estaremos?
No dia 28 de outubro de 2018 mais um episódio do Estado de exceção se consolidou, talvez o mais duro até agora: a morte da democracia formal pela própria democracia formal. Mas insisto em afirmar que a maior vitória dessas eleições foi o povo nas ruas, em defesa da democracia. Quis a história que estivéssemos aqui, coube a nós o papel de resistirmos, de enfrentarmos o neofascismo e defendermos a democracia.
Por fim, ao mesmo tempo que o processo eleitoral colocou em cena uma grande parcela de entusiastas do autoritarismo, “os filhotes da ditadura”, ele também revelou a profunda falta de conhecimento histórico do brasileiro. Neste sentido, pela memória dos nossos mortos, que morreram em defesa da democracia e que foram vitimados pelo avanço do neofascismo, eu digo e nós dizemos, para que não nos esqueçamos:
Marielle Franco, presente.
Anderson Gomes, presente.
Laysa Fortuna, presente.
Kharoline, assassinada em Santo André, presente.
Mestre Môa do Katendê, presente.
Priscila, assassinada no Largo do Arouche, presente.
Charlione Lessa, presente.
E todos (as) aqueles (as) que, nos últimos meses, sofreram algum tipo de violência, presentes!