Não é hora de tornar o candidato à Presidência Jair Bolsonaro e seu discurso fascista maior do que, de fato, eles são. Certamente hoje, talvez mais do que em qualquer outro período pós-redemocratização, o germe protofascista se dissemina com intensidade. Não podemos, contudo, perceber os movimentos que eclodem na sociedade brasileira senão a partir do conflito. Os últimos meses não registraram apenas expressões de ódio, machismo, LGBTfobia e ataques aos direitos dos trabalhadores, seja por parte dos três patetas – Jair Bolsonaro, General Mourão e Paulo Guedes – ou dos seus seguidores. Registrou-se, também, uma forte reação de setores progressistas, que defendem a democracia e se posicionam na contramão dos discursos de ódio contra as mulheres, as pessoas homoafetivas, os negros e toda a gama de minorias políticas. O momento é de embate, de disputa. O movimento #EleNão, que tomou as ruas de várias cidades do Brasil no dia 29 de setembro é prova disso. O que vemos é que o fascismo não tem carta branca para se alastrar no solo brasileiro. Há uma forte reação ao candidato do PSL e ao que ele representa.
Mas ao mesmo tempo que há uma forte resistência a tal candidato, também há um grande apoio, conforme demonstra o resultado do primeiro turno da eleição presidencial. Não me proponho aqui a elaborar uma explicação para o crescente apoio do candidato nos últimos meses. São muitos os fatores que contribuíram para isso. Contudo, uma coisa é certa: não podemos recair no equívoco de julgar todos esses sujeitos como fascistas, canalhas e mal-intencionados. Nem de perto o eleitorado do candidato do PSL se constitui como um bloco homogêneo. Há sujeitos que possuem uma posição muito bem demarcada na defesa de seus interesses e por isso apoiam Bolsonaro, como o alto escalão das Forças Armadas e parcela da elite brasileira – mas me refiro aqui a verdadeira elite econômica, não a classe média que se reivindica como elite –, excitada com a real possibilidade de continuidade do programa econômico ultraliberal, encabeçado por Paulo Guedes. Contudo, se dependesse apenas desses dois setores, Bolsonaro não seria uma real ameaça no processo eleitoral.
Há, ainda, aqueles que, com convicto ódio ao Partido dos Trabalhadores, preferem qualquer coisa, inclusive um candidato que defende abertamente a tortura e já se pronunciou publicamente diversas vezes ofendendo pessoas homoafetivas, mulheres e negros. Contudo, há uma parcela do eleitorado – alguns dos quais encontram-se no grupo supracitado – para qual a luta é pedagógica. E agora, no segundo turno, será o momento de investir nessa luta.
Bolsonaro angaria votos por apresentar saídas fáceis para problemas complexos, sendo talvez a liberação do porte de armas e sua ênfase na exacerbação do punitivismo os exemplos mais expressivos. A violência urbana, vale lembrar, afeta sobretudo os pobres: aqueles que não tem automóvel particular, que transitam a pé de suas casas até os pontos de ônibus. Com seu discurso emocionado, inconsistente tecnicamente – maior punição e liberação do porte de armas, ao contrário do que se imagina, aumenta a violência e a insegurança – e quase que messiânico, Bolsonaro captura parcela do eleitorado. Associado a isso, está o fato de criar um Brasil que não existe, misturando ”ideologia de gênero”, ”Venezuela” e ”corrupção” para criar um cenário apocalíptico em que ele, empunhando um fuzil, se propõe enfrentar. Por fim, a cultura política personalista que enxerga o Governo Federal como resultante da vontade de um sujeito e não de um complexo arranjo político-institucional também fortaleceu Bolsonaro. A associação desses fatores e de um cenário econômico produtor de profunda insatisfação popular fez com que um conjunto de pessoas que historicamente não se importavam tanto com o debate político, passassem a ver em Bolsonaro uma saída para crise econômica e política da qual o Brasil enfrenta.
Por mais que Bolsonaro carregue consigo a marca de ser um parlamentar com uma trajetória patética, sempre integrando o chamado baixo clero da Câmara dos Deputados, e de estar associado com as Bancadas da Bala, da Bíblia e do Boi, sempre contrárias aos direitos dos trabalhadores, o candidato do PSL é visto por muitos como um político “antissistema”. Ao contrário, Bolsonaro é aquilo que de pior o sistema político brasileiro oferece e sua trajetória como deputado federal é um exemplo disso. Se diz patriota, mas presta continência para a bandeira estadunidense e tem um plano de governo entreguista, que coloca o Brasil como refém do capital internacional. Diz-se honesto, mas escândalos que o envolvem não faltam, como o caso da JBS, o da funcionária fantasma de Angra dos Reis e, ainda, o legal mas imoral fato de receber auxílio moradia da Câmara dos Deputados mesmo possuindo imóvel em Brasília – um dos vários que possui no Brasil. Diz-se cristão, mas defende publicamente a prática da tortura e dissemina o ódio contra minorias políticas e aqueles que praticam ilegalidades – não os crimes de colarinho branco dos quais Bolsonaro é suspeito – como estratégia de sobrevivência no capitalismo periférico brasileiro. Para “cristãos” como Bolsonaro, nunca é demais relembrar o versículo 43 do capítulo 23 do evangelho de Lucas, onde Jesus, na cruz, após horas sendo torturado como criminoso, fala ao ladrão “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”.
É por essas e outras que, no segundo turno, a missão de todos aqueles que defendem minimamente um projeto democrático para o Brasil será desmitificar o mito. Devemos travar, incessantemente, uma luta pedagógica, nos grupos dos aplicativos de mensagens instantâneas, nas redes sociais, nas ruas etc. Devemos expor as consequências de seu projeto para a economia e para os direitos trabalhistas. É preciso desconstruir as falácias que são difundidas. É preciso ter paciência. E é preciso, sobretudo, ocupar as ruas. Sigo o caminho iniciado por Giorgio Agamben, admitindo que todo Estado democrático possui, em si, um germe do Estado de exceção. Como também escreveu o dramaturgo alemão Bertold Brecht e o presidenciável Ciro Gomes, ao seu modo, relembrou recentemente “a cadela do fascismo está sempre no cio”. Devemos, por um lado, nos dedicar a luta pedagógica, de modo a não deixar o terreno livre para a célula do protofascismo germinar nos corações e mentes da classe trabalhadora mas devemos, ao mesmo tempo, ocupar as ruas, convocar manifestações, passeatas e protestos em defesa da democracia e dos direitos civis, políticos e sociais, tão ameaçados nos últimos anos.
A vitória nas urnas é importante, mas tomá-la como o ponto de chegada é um dos maiores equívocos da luta política no atual momento. Não adianta depositar crenças cegas nas instituições democráticas. A frágil experiência democrático-burguesa que vigorava no Brasil pós-1988 foi rompida em 2016, com o golpe parlamentar-jurídico e midiático que destituiu a presidenta Dilma Rousseff e permitiu a Temer e seus asseclas a implementação de um programa ultraliberal, com a PEC 95 e a Reforma Trabalhista. No início de 2018, o ex-presidente Lula foi preso através de um processo marcado por uma série de arbitrariedades, cujo objetivo era evidente: tirá-lo da corrida presidencial a qual estamos assistindo agora. Tais eventos são dois grandes exemplos do Estado de exceção brasileiro. A vitória de um projeto social-democrata do Partido dos Trabalhadores nas urnas talvez não seja o suficiente para que Haddad e Manoela assumam, em 2019. É por isso que insisto na necessidade, mais do que nunca, de não cessar a luta no campo eleitoral.
É diante dessa fragilidade do Estado democrático e de suas instituições – inclusive o poder Judiciário – que confiar cegamente em um instrumento legal como as eleições pode não ser a tática mais acertada. É importante derrotar o fascismo nas urnas, mas é igualmente importante ocupar as ruas em defesa da democracia. Em 2014, com a derrota de Aécio Neves no segundo turno, o descrédito da urna eletrônica foi levantado como hipótese para deslegitimar o resultado das eleições. Tal narrativa permanece viva hoje, inclusive com a disseminação de vídeos falsos. Isso nada mais é do que uma tentativa golpista de preparar o terreno para a possível derrota que aguarda Jair Bolsonaro no segundo turno, candidato este que, afrontando premissas democráticas básicas, já expôs em entrevista que não aceita resultado que não seja a sua vitória. O movimento #EleNão deve servir de inspiração para as próximas ações coletivas que o momento histórico demanda de todos os setores comprometidos com os valores democráticos. Será a união dos trabalhadores e trabalhadoras, ocupando as ruas, que irá barrar o fascismo. Vamos à luta!