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Recessão democrática ou entre a civilização e a barbárie

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por Homero Costa – Cientista Político e professor da UFRN

 

Em 2018 foram publicados no Brasil dois livros importantes para compreender o atual estágio da democracia no mundo: Como as democracias morrem de Steven Levistky e Daniel Ziblatt (editora Zahar) e Como a democracia chega ao fim, de David Runciman (editora Todavia).

O diagnóstico é que o futuro da democracia está ameaçado, depois de um período de expansão, especialmente pós o fim da Segunda Guerra Mundial, com a derrota do nazifascismo.  Para os autores há um perigoso retrocesso democrático no mundo, uma erosão das normas democráticas. Os regimes políticos democráticos têm declinando, aumentando os regimes autoritários e este é o grande desafio: o que e como fazer para impedir o avanço desse retrocesso.

Um dos componentes desse processo é a intolerância. Para Levistky “A intolerância mútua coloca a democracia em perigo. Quando a política fica polarizada a ponto de vermos rivais como ameaça à nossa existência, o que tornaria sua eleição intolerável começamos a justificar o uso de meios extraordinários – violência, fraude eleitoral, golpes – a fim de derrotá-los”.

O termo recessão democrática foi utilizado pelo cientista político norte-americano Larry Diamond (Universidade Stanford) no artigo Facing Up to the Democratic Recession (“Enfrentando a recessão democrática”), publicado Journal of Democracy (volume 26, Number 1 January 2015) e disponível em https://www.journalofdemocracy.org/sites/default/files/Diamond-26-1_0.pdf

Para ele, as características dessa recessão são: o declínio da participação popular em eleições; a fraqueza no funcionamento dos governos; o declínio da confiança nas instituições e dos partidos políticos a crescente influência de instituições e órgãos de especialistas não eleitos nos processo eleitorais e o abismo entre as elites políticas e o eleitorado; o declínio na liberdade de expressão; e a erosão das liberdades civis.

Quanto ao declínio da democracia, a sua constatação está num relatório divulgado no dia 31 de agosto de 2018 pela revista britânica The Economist (“Índice da Democracia”) em que avalia 165 países.  O índice, em uma escala de 0 a 10, se baseia na nota de 60 indicadores, reunidos em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política e cultura política. O que foi apresentado faz parte de um conjunto de dados que têm sido realizados todos os anos, chamado Índex Democracy com o objetivo de mensurar a percepção do regime político democrático no mundo.

Segundo os dados apresentados, na média global, houve um declínio de 5,52 em 2016 para 5,48 em 2017 e é o pior desde 2010, que foi 5,46 e apenas 30 dos 165 países foi classificado como de democracias plenas (os demais são democracias falhas – caso do Brasil, regimes autoritários e regimes híbridos).

No relatório consta que em 2017 nenhuma das regiões do mundo observou uma melhora na média de seu índice de democracia em relação ao ano anterior – a América do Norte (Canadá e EUA) apenas manteve a nota. Europa Ocidental e Oriental, Oriente Médio/Norte da África, África Subsaariana, América Latina e Ásia pioraram.

O estado da democracia no Brasil seguiu a tendência global e piorou em 2017 e a nota está em queda desde 2014, entre outros aspectos, o relatório destaca as votações das duas denúncias contra o presidente Michel Temer que foram derrubadas no Congresso Nacional.

Os dados expressam o que diversos analistas têm qualificado como de crise da democracia representativa, que se caracteriza, entre outros aspectos, na perda de confiança na política democrática e no Legislativo, Executivo e no Judiciário.

Mas a constatação e os dados não podem significar o fim da democracia, mas o seu oposto: a necessidade de mantê-la porque é exatamente nesse vácuo de descrença que crescem as tentações autoritárias “contra tudo que está aí”, dando uma falsa sensação de segurança (o combate da violência com violência é apenas uma delas) que poderá desembocar em ditadura.

No Brasil, as perspectivas em relação à democracia nas eleições de outubro colocam duas possibilidades: ou manter, com todas as suas limitações, a democracia que temos (a democracia falha, segundo o relatório citado) ou o retrocesso. No caso da vitória da primeira, expressa nas candidaturas com mais chances de uma disputa no eventual segundo turno, Fernando Haddad ou Ciro Gomes ou no segundo caso, uma vitória de Jair Bolsonaro, podemos ter a transição, pela via eleitoral para um Estado autoritário, com o apoio de parcelas consideráveis da população.

Em entrevista a revista Época de 24 de setembro de 2018, Larry Diamond  se disse preocupado com o que Bolsonaro representa para a democracia brasileira. Ao ser perguntado sobre o “fenômeno Bolsonaro” afirmou “Eu diria que o Brasil não deveria minimizar o risco de uma figura populista de direita com tendências autoritárias – e ligações autoritárias com o passado – ser eleita presidente e colocar em perigo a liberdade, o estado de direito e os direitos humanos no Brasil daqui para frente”.

Como disse Fernando Henrique Cardoso no artigo civilização ou barbárie, publicado no dia 1/4/2018 no jornal o Estado de S. Paulo “A história dos últimos 20 anos mostra que a democracia pode morrer sem que necessariamente haja golpes de Estado e supressão de eleições. Ela morre quando grupos e líderes políticos se aproveitam do rancor ou do medo do povo para sufocá-la”.

E esta uma das teses centrais do livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: O fim das democracias não se dá mais com os tradicionais golpes militares, mas pelo voto: as democracias são corroídas lentamente, e às vezes por pessoas que subvertem o processo que o levou ao poder.

No Brasil, as ameaças à democracia têm como uma de suas justificativas o combate à “desordem”, e para isso juntam racistas, homofóbicos, misóginos, os defensores de ditadura e os que alimentam o discurso do ódio e da violência, num clima de polarização política, no qual os adversários passam a ser inimigos e o que isso representa.

Creio que um dos grandes desafios hoje é saber se uma eventual vitória de Fernando Haddad ou Ciro Gomes, por exemplo,  tomarão posse ou estarão sempre sob ameaças de golpe.  Dilma Rousseff não conseguiu governar e desde o início do segundo mandato teve a legitimidade contestada e depois afastada por um golpe em 2016.  A contestação das eleições deste ano já foi pré-anunciada pelo candidato do PSL, insinuando fraude eleitoral, suspeitando de urnas eletrônicas (se esquecendo que ele e seus filhos foram eleitos várias vezes por estas mesmas urnas) e também pelo comandante do Exército, general Villas Boas, quando declarou em entrevista ao Estadão (9/9/2018) que a “Legitimidade de novo governo pode até ser questionada”. Nesse caso, dependendo do candidato.  Da mesma forma o candidato a vice presidente, General Hamilton Mourão, ao admitir a hipótese de intervenção das forças armadas caso de “anarquia”, assim como a possibilidade de um autogolpe (e até mesmo uma eventual Constituinte, mas sem representantes eleitos pelo voto e sim por uma comissão de “notáveis”).

A questão é: que forças terão o governo de Fernando Haddad ou Ciro Gomes, por exemplo, para revogar as medidas antipopulares e antinacionais em vigor? Como construir uma base político-partidária sólida no Congresso Nacional? É fundamental que a mobilização popular vá além do processo eleitoral,  sob o risco do que ocorreu não apenas com Dilma Rousseff, mas com Getulio Vargas entre 1951-54, JK (Que teve a eleição contestada pela UDN, mas o general Henrique Lott impediu que houvesse um golpe) e João Goulart, impedido de tomar posse em 1961 pelos militares e só o fez depois com o arranjo parlamentarista, e só governou como presidente, em meio a uma grave crise política,  de janeiro de 1963, com o retorno ao presidencialismo através de um plebiscito, a março de 1964, quando foi derrubado por um golpe.

O fato é que há uma ameaça real à democracia, com as hordas bárbaras, que desprezam as instituições democráticas e não apenas no Brasil, porque o crescimento da extrema direita hoje ameaça também países com larga tradição democrática na Europa, com as conseqüências que se conhece desses retrocessos: além da xenofobia, a regressão de toda ordem: cultural, política, econômica e social.

Assim, num momento em que a democracia está ameaçada, há a necessidade de lutar para aperfeiçoar as instituições democráticas e esse deve ser o maior objetivo porque senão estaremos caminhando para a barbárie e tudo que ela significa. A defesa do Estado Democrático de Direito, com respeito às liberdades civis e dos direitos humanos, portanto contra tudo e todos os que querem romper com as regras do jogo democrático, que negam a legitimidade de pleito que não o favorecem  e que cultivam o ódio e a intolerância e a violência e assim pavimentam o caminho de uma ditadura.