Por Igor Gacheiro (Professor de Sociologia IFRN)
O racismo no ocidente consiste num arranjo social que assegura uma distribuição de bens simbólicos que privilegia pessoas brancas. Com o intuito de garantir hegemonia étnica, os europeus há séculos desenvolvem colunas ideológicas que legitimam e sustentam a exploração dos povos negros. Duas das principais vigas dessas colunas são a “pigmentometria” e a “pigmentocracia”. A primeira funciona como processo que mede o grau de branquitude de alguém com o intuito de constituir distinção, e a segunda funciona como processo que outorga a distribuição dos bens simbólicos citados acima. A engenharia racista, enfim, incide sobre os campos econômico, educacional, político, jurídico, salvaguardando saúde física e psicológica para os brancos.
Na segunda metade de junho, a Netflix disponibilizou no Brasil os episódios da série “Unsolved – os assassinatos de Tupac e Notorious BIG”. A trama (baseada em fatos reais), que narra a história de duas investigações sobre as mortes dos rappers Tupac Shakur e Christopher Walace, é bastante emblemática para a discussão sobre racismo na América. Principalmente porque fica evidente a falta de interesse da superintendência da polícia de Los Angeles e outras autoridades da cidade em aprofundar as investigações, defendendo sempre a tese do homicídio motivado por disputa de gangues.
Tupac e Notorious BIG não produziam música para brancos, não lançavam marcas e produtos que representassem grupos de pessoas brancas. Tupac e BIG não eram brancos. Por isso não tiveram uma morte profundamente “investigável”. Os assassinatos, que ocorreram há mais de vinte anos, numa cidade historicamente marcada pela tensão racial, e a consequente apatia da justiça para solucionar os casos são traduções do projeto de soberania branca. São traduções do meticuloso processo de manutenção do brio caucasiano.
Muito se falou nos últimos anos sobre o monstruoso índice de homicídios não solucionados no Brasil: são mais de 90% de crimes de assassinato que a polícia não consegue (ou não quer) decifrar. Não à toa, acompanhando esse índice, acessamos dados que revelam a enorme discrepância entre o percentual de homicídios de jovens negros e brancos. Em 2012, por exemplo, 158% a mais de negros foram assassinados. A inteligência “branquizadora” que fez empacar até hoje as conclusões sobre a morte de Tupac e BIG engendra, articula, prepara a subtração dos que não se adequam ao padrão pigmentométrico e, ao mesmo tempo, anula qualquer responsabilidade dos grupos vinculados à população branca nesse processo, refundando constantemente a chamada “pigmentocracia”.
A cada episódio de “Unsolved” localizamos a correspondência entre as condutas das polícias estadunidense e brasileira. Na verdade, localizamos uma espécie de protótipo de atuação policial vinculado aos desígnios de hegemonia branca nos países colonizados por europeus. A série, apesar de seu ranço hollywoodiano característico, assinala questões cruciais sobre alguns dilemas que compõem a tensão racial no Brasil e em toda América. Mais que isso, “Unsolved” percorre os meandros de um campo minado aprontado por gente clara.