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UTOPIAS, DISTOPIAS E AMOR

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Por Orlando Arroyave – Psicólogo e Doutor em Ciências Sociais – Universidad de Antioquia/Colômbia

Tradução do espanhol para o português por Óscar Mauricio Gómez Gómez – FUNCERN/IFRN

O sempre atual Oscar Wilde, em seu revolucionário ensaio “A alma do homem sob o socialismo”, escreveu: “um mapa-múndi em que não figurasse a utopia não valeria a pena ser olhado, pois faltaria nele o único país no qual a humanidade se refugia diariamente: [o ideal d’]o progresso; este não é mais que a realização da utopia”[1].

As revoluções, que são intentos de pôr em práticas utopias, costumam transformar as sociedades em distopias; isto é, em sociedades negativas, indesejáveis, totalitárias, nas quais predominam a domesticação, a escravatura e as ofensas à dignidade humana.

Para o ativista e pensador Sercko Horvat[2], as revoluções têm fracassado porque sufocam o desejo e o amor. Os exemplos que este pensador traz ilustram essa constante nas revoluções, sejam políticas, sejam religiosas: seu ódio ao desejo.

A Revolução de Outubro, a mãe de todas as revoluções do século XX, começou com a despenalização do aborto, a autorização do divórcio e a abolição das leis contra a homossexualidade; poucos anos após, restabeleceram-se as leis contra a homossexualidade e qualquer “perversão sexual”, assim com as leis contra o divórcio. Os psiquiatras oficiais do regime afirmavam que o sexo era igual ao ópio. Assim como Santo Agostino argumentava que uma ereção fazia que um crente esquecesse Deus, os psiquiatras revolucionários sustentavam cientificamente que a sexualidade era uma forma de desviar da luta de classes. Os debates, antes da revolução, giravam em torno das consequências funestas do gosto pelas flores de alguns revolucionários: começariam cheirando flores e logo se transformariam em latifundiários que se balançariam em redes, atendidos por um exército de criados, enquanto leriam romances franceses.  O próprio Lenin, que promulgou reformas legais que despenalizavam as sexualidades periféricas e que outorgavam direitos às mulheres, considerava que o sexo e o amor eram demasiado burgueses. O verdadeiro revolucionário deveria ser um asceta. Lenin se autocensurava o gosto que sentia por escutar a Appassionata de Beethoven; um revolucionário, pensava, devia ser um “triste asceta”, e ter, como único deus, sua revolução.

Outro comunista e ditador, o albanês Enver Hoxha proibiu a dança, a música, o teatro, o balé, entre outras artes burguesas, que ele próprio consumia com amor, pois acreditava que essas artes deveriam ser usufruídas e praticadas somente por “aqueles que têm a razão em perfeito estado”, como os dirigentes que governavam o país.

O tirano líbio Muammar al-Gaddafi também proibiu a música. Este dirigente instigou a população a queimar CDs e fitas cassetes, tanto da música local quanto da estrangeira. E proibiu as mulheres de cantar. Igualmente como nos tempos dos primeiros muçulmanos do século V, aquele governante considerava os cantos e os instrumentos como manifestações de lascívia e pecado. Essa proibição não impediu que o próprio Gaddafi e seus familiares contratassem cantores pops norte-americanos para animarem suas festas.

A revolução religiosa iraniana – que entusiasmou, insensatamente, Michel Foucault – fechou bares, cabarés, sinucas, piscinas e proibiu os jogos de cartas e as danças, pois qualificava esses entretenimentos como vulgares, próprios de gente ignorante, que tinha esquecido a palavra de Alá. O aiatolá Ruhollah Khomeini, líder dessa revolução teocrática, propunha que as mulheres que se exibissem em maiô fossem esfoladas vivas. Sua guarda revolucionária, além de perseguir, bater e matar infiéis, tinha como tarefa principal confiscar instrumentos musicais, pois as canções distraiam aos fiéis que deveriam adorar constantemente a seu deus narcisista, que espera que o amem e o adorem eternamente. Para a revolução iraniana, a música promove o prazer e a discórdia. Em 2014, ainda os guardas revolucionários lançavam ácido às mulheres por não levarem o véu ou usarem roupas consideradas “inapropriadas”. Na atualidade, proíbem-se os livros de Marx e Stendhal.

Cada revolução, algumas baseadas no amor (aos pobres, à humanidade…), tem suas próprias práticas contra o desejo sexual, a sensualidade e a diversidade. Desde o cristianismo até a revolução francesa, passando pela revolução cubana ou pelo regime de extermínio de Pol Pot em Camboja, cada uma dessas revoluções teve como inimigo o desejo.

Mas se as revoluções fracassam pela perseguição ao desejo sexual, como afirma Horvat, a revolução de Maio de 1968 triunfou então? Na sua defesa, ao menos este movimento não se tornou governo; foi, ao máximo, um movimento que deu visibilidade as grandes transformações culturais sobre os direitos sexuais ou de gênero, acontecidas durante o século XX.  As sucessivas guerras europeias tinham trocado as transformações de liberação sexual, que já tinham ocorrido em cidades como Berlin ou Paris nas primeiras décadas desse século.

Para Pier Paolo Pasolini, o moralista social da Europa dos anos 1977, das revoltas hippies e da Revolução de Maio de 1968 representavam uma adequação de uma geração a novas expectativas, próprias de uma nova classe de consumidores, e um novo capitalismo estava disposto a atender essas demandas. Seu pessimismo se refletia em seu poema à revolução de 1968: “sim, em verdade que fazem os jovens”:

 

(…) jovens louros que confundem com perfeita boa-fé a dinamite com seu esperma (e caminham com grandes guitarras pelas ruas falsas como bambolinas, em grupos de sujos); colegiais universitários que ocupam a Aula Magna reclamando do Poder, ao invés de renunciar a ele de uma vez por todas; guerrilheiros com suas guerrilheiras ao lado que decidem que os negros são como os brancos (mas, por acaso, que os brancos não são como os negros): todos esses não preparam outra coisa que a chegada de um novo Deus Exterminador[3]

 

Esses jovens, “rebeldes enfermos de esnobismo burguês”, segundo Pasolini, que esperavam “um novo Deus Exterminador”, portavam “inocentemente […] uma cruz suástica”, como futuro do símbolo que se avizinhava. Esses rebeldes não pressentiam que não eram o poder, assim proclamassem que “nós somos o poder”.

O escritor italiano afirmava que uma nova racionalidade econômica, que se estendia pelo mundo, destruiria qualquer vestígio dos mundos rurais, populares e quase religiosos, por um consumismo totalitário. Pasolini denominou esse movimento de neocapitalismo.

Todavia, ao mesmo tempo em que aparecem, nas últimas décadas, tantas expressões desesperadas de niilismo, ou novos fascismos, que avalizam essa racionalidade econômica, de vez em quando, as pessoas se levantam, em diversas cidades do mundo, como Teerã, Nova York, Madri ou Atenas, contra as tiranias das teocracias como as do Irã ou contra as tiranias financeiras de Wall Street.

Esperançosamente, em todo o mundo, ainda existem pessoas e coletivos que levam a sério o que predicou o movimento de Maio de 1968, “nós somos o Poder”, para interrogar, derrubar ou intervir nas decisões mais prementes da existência, superando a “melancolia das esquerdas”, como nomeou Walter Benjamin. A vida política, sem que se queira, converteu-se num campo no qual a vida e a morte disputam; ali, arrisca-se a sobrevivência e bem-estar de comunidades, ou da humanidade toda. A utopia pode ser uma boa bússola para guiar nossas lutas.

Para Horvat, esses movimentos não perduram, pois falta um encantamento, amar com paixão essas causas que nos movem, por nossos interesses comunitários, apesar de nossa propensão atual pela dispersão e pela fugacidade. Para esse pensador, a revolução deve tomar o amor como horizonte ético, para além da idealização do casal romântico, e fazê-lo extensivo aos grupos próximos e à humanidade toda.

Essas lutas devem ter, porém, alguns princípios para que não se tornem novas tiranias. No catálogo proposto por Michel Foucault (1994), em seu texto “Introdução à vida não fascista”[4], há uma série de princípios que devem guiar os revolucionários; nomeio dois: Em primeiro lugar, frente ao “asceta triste”, Foucault propõe: não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária”. Em segundo lugar, “não se apaixonem pelo poder”.

Ademais do amor às causas que buscam transformar o intolerável do mundo, deve-nos acompanhar a luta agonística – constante contra nossos próprios fascismos – que impede que as utopias se tornem distopias.

Notas:

[1] Wilde, O. Wilde, O. (1981). El alma del hombre bajo el socialismo”, en Obras completas, Madrid, Aguilar, p.1299.

[2] Horvat, S. (2016). La radicalidad del amor, Pamplona, Katakrak

[3] Pasolini, P.P. (1970). Teorema, Buenos Aires, Editorial Sudamericana.

[4] Foucault, M. “El antiedipo: una introducción a la vida no-fascista”, recuperado por: Kancyper, (1994). El campo analítico con niños & adolescentes”, en: Zona Erógena, 18, pp. 3 y 4.