Comentários sobre o livro, com spoilers.
Na varanda de uma casa de praia, à noite, eu conversava com uma tia e prima sobre amor. Cerveja, brisa e mar convidam esses assuntos, falei: “acho que todo mundo tem alguém que sempre vai amar, embora não dê certo, por isso ou aquilo, o amor sempre estará lá, e a gente aceita que esteja lá, pois é melhor assim”. Elas concordaram e fizeram alguns comentários sobre este estado, que Chico Buarque se aproximou em “Futuros Amantes”. Nossas sexualidades diferentes não foram obstáculos para a empatia, houve naquela concordância um entendimento de que algo nos une enquanto sujeitos, mesmo com experiências distintas; que a condição humana é partilhada universalmente. Penso que a literatura é esse universal, embora não queira aqui limitá-la e espero jamais tentar. O universal que permite nos colocar no lugar e sentir o Outro como se a nós mesmos. Quer o Outro seja uma cadela que sonha com preás ou um replicante em possuir ovelhas de verdade.
Nesta obra, André Aciman, estadunidense nascido no Egito, não escreve (mais) uma fábula sobre dois homossexuais, como vem se dizendo, mas a respeito de dois bissexuais bastante resolvidos consigo mesmos, cujos poros vertem deleite e prazer.
A localidade onde a maior parte do que é contado é vivido pelas personagens não foi, naturalmente, escolha aleatória. A Riviera Italiana é quente, colorida, transpira, deseja, corre com pouca roupa, hedoniza, se apaixona, enfim, tem o mesmo clima presente nos morros e rios dos corpos de Elio e Oliver. O cenário, a casa grande com seu piano e intelectuais convidados, os protagonistas desfrutando da vida contemplativa como se tudo fosse verão, são amálgamas. Trata-se de uma história satírica, numa etimologia — vivida pelos sátiros. É também uma história a respeito das microagonias e das buscas de significados que o desejo implica, sobretudo na juventude. Dos pensamentos absurdos que ele sucinta; das análises demoradas de um gesto de mão ou do silêncio; do prazer elétrico quando os pés se tocam por debaixo da mesa ou quando, finalmente, transamos com a pessoa amada.
“poderia me matar, ou me ferir gravemente e fazer com que ele soubesse o porquê. Se machucasse meu rosto, queria que ele olhasse e se perguntasse por quê; por que alguém faria isso consigo mesmo, até que, anos depois — sim, depois! —, finalmente ele juntasse as peças e batesse com a cabeça na parede.”
E é essa experiência contada por um jovem de 17 anos, a partir de um ponto de vista sem vergonha, sem condenação, que torna a obra o exemplar de um novo tempo na literatura. Um clássico. Um marco representando talvez uma cisão importante neste tipo de novela, pois a prosa e o cinema “gay” popular têm se concentrado principalmente no sofrimento impingido a esta população nos diversos países e momentos. Este recurso é utilizado normalmente para criar empatia com o outro que sofre, e teve sua eficácia, mas parece ser uma obra de arte sempre destinada aos conservadores e, ao meu ver, com elementos de sadismo. Desviando-se do lugar comum, Aciman rompe com qualquer um que deseje ler gays em agonia, privação e dor. Para isso, aproveita muito do conto erótico e dos “romances de amor”. “Me Chame Pelo Seu Nome” não é um livro para convencer nenhum homofóbico, nem se destina ao instituto da heterossexualidade obrigatória e seus entusiastas, é um livro para os que já estão dispostos à empatia pela via do reconhecimento do outro no prazer e no amor. Apenas.
Aqui os homofóbicos não vencem no final. Os protagonistas não se suicidam, nem são espancados, não passam por um calvário do início ao fim. Não há AIDS, nem vício em drogas. Não são dois sujeitos que só querem amar verdadeiramente num mundo cinza, impedidos do gozo e quase totalmente desprovidos poder de resistência contra a realidade que se abate dura sobre eles. Oliver e Elio são faunos que fazem sexo a três, fumam maconha, desejam e transam com mulheres (e com um pobre pêssego) enquanto estão apaixonados um pelo outro. Não sentem ciúmes doentios, nem culpa na Bordighera prosaica, entre literatura clássica e música erudita.
Foi dito que a culpa é um dispositivo cristão. Em “A Comunidade Que Vem” o filósofo italiano Giorgio Agamben propõe uma vida surda à “poderosa máquina teológica da oikonomia cristã”. Para Tomás de Aquino, ele explica, as crianças que morreram sem ser batizadas, desprovidas de pecado, não recebem uma punição aflitiva, “mas unicamente uma punição privativa, que consiste na perpétua carência da visão de Deus”. Não foram batizadas, portanto não têm o conhecimento sobrenatural oferecido pelo rito, percebem apenas o natural, por isso desconhecem Deus, que também não se dirige à elas. De tal maneira que “a maior punição — a carência da visão de Deus — se inverte assim em natural alegria: incuravelmente perdidos, eles se demoram sem dor no abandono divino. Não é Deus que os esqueceu, mas são eles que já sempre o olvidaram, e contra o seu olvido permanece impotente o esquecimento divino. Como cartas que permaneceram sem destinatário, esses ressuscitados permaneceram sem destino. Nem bem-aventurados como os eleitos, nem desesperados como os condenados, eles são plenos de uma alegria para sempre não destinável”.
“Me Chame Pelo Seu Nome” é um livro pleno desta alegria surda à máquina teológica cristã. Ele não questiona a vontade de Deus, ou se os LGBTQ herdarão o Reino, não procura consultar a Bíblia sobre o que dita a respeito dos desvios variados. Mas está do lado de fora do cristianismo, de seus dilemas morais e esquemas narrativos. Os haters e conservadores passam ao largo da preocupação do autor, o cristianismo não é chamado para a festa. Não põe as cartas aqui. É um romance de uma comunidade que vem. Uma obra telúrica. Um livro que não pretende ser salvo nem condenado.
Então por qual motivo fez sucesso no ocidente cristão? A narrativa condenatória e redentora tem perdido sua força, e as pessoas não-héteros estão cansadas de serem retratadas sempre em lágrimas. Mas também, a partir da sua segunda metade em diante, já convencidos de que o desejo e o amor de Elio não durará apenas uma estação, somos apresentados ao futuro das personagens. Eles não terminam juntos, como muitos de nós também não morreremos ao lado daquele amor que existirá sempre num sono. Com pouca ou muita resistência as personagens acabam consentindo ou tendo que aceitar seu destino, mas mantendo meio adormecido este sentimento que “pode esperar em silêncio”. Como um verão interminável sobreposto por camadas de estações. Eis uma partícula da condição humana.
— Eu tinha um canto? — perguntou ele com um meio sorriso.
— Você sempre vai ter um canto.