Quando se soube, em minha família, que ele tinha câncer, houve quem o acusasse de causar a doença a si próprio, apenas para fazer campanha. Se disser que perdemos ao menos três parentes para esse mal terrível, creio que dou a medida do ódio para o qual fui educado.
Fui alfabetizado no ódio ao Lula desde cedo. Quando criança, seguia meu pai pelas usinas de açúcar onde trabalhava. Eu o vi tantas vezes dando ordens a umas pessoas em forma de trapos, dobrados ao meio, agachados, cortando a cana ainda fumegante da queima, que em algum momento, por uma crueldade especial, parei de discernir entre aquela gente e a cana, transformando tudo numa paisagem só, de magreza, pretume e fumaça, por onde eu passava olhando pela janela do carro, a caminho da bela casa, com piscina, onde “gente de serviço” não podia entrar. Por muito tempo, esta foi a imagem de paz para mim, que um ser estranho chamado Lula, com seu feitiço secreto, seu poder de destruição, estava a ameaçar.
Nas conversas frequentes entre usineiros que ouvia ao pé da varanda, aprendi que até se pode dar uma esmola ou outra para “essa gente”, pra cachaça que seja, desde que não para deixar mal-acostumada, sem querer trabalhar “duro”, como aconteceria quando viesse o bolsa-família; ou pra compensar uma escara mal curada, um membro amputado, um tumor saltando da pele, exibidos como troféus embaixo dos semáforos, não precisa de mais médicos, ainda menos cubanos, basta um trocado para cuidar-lhes do corpo.
Tudo bem convidar a “moça que faz a comida” pra sentar na mesa, desde que seja de lado, quase caindo, pronta pra levantar e nos buscar alguma coisa da cozinha, não com direito a ficar indefinidamente, nem com direito algum, décimo-terceiro, carteira assinada, aposentadoria; que Luís, este sim (não o Inácio, grevista vagabundo!) é um bom trabalhador, acorda antes das cinco, limpa, lava, cozinha, para quinze, vinte pessoas, até quase meia-noite, mesmo no domingo, por uns cinquenta reais quaisquer, e se não faz como deve, é só dar uns gritos como quem vai matar, bramindo o punho, orgulhando uma chibata imaginária, assim mesmo, na frente de todos, porque a humilhação às vezes – só às vezes – marca melhor que o chicote, e o negro logo torna aos eixos, nem precisa de faculdade pra ele, nem de cota, nem de nada, porque se quiser de verdade, ele pode vencer na vida, como eu venci, eu – aluno do colégio Marista, de escolinhas de inglês, de cursinhos pré-vestibulares, que sei de muitas coisas, que falo duas línguas, mas, enquanto Luís apanhava, sempre fiquei calado…
Eu nunca votei no Lula. E não terei agora a chance de votar. Mas alguns erros existem para nos acompanhar a vida inteira. São a parte mais importante de nós – como também de um país. Hoje, o Brasil abre mais uma dívida consigo mesmo. Cabe a ele descobrir como pagar. De minha parte, já decidi: voto em quem Lula indicar.
Leo Ventura é músico, poeta e atualmente Doutorando em História na UFPE