Alípio DeSousa Filho, cientista social, professor da UFRN. Doutor em sociologia pela Sorbonne-Paris V
A resposta à pergunta do título é, seguramente, não: um grande NÃO! Todos aqueles que estudam e ocupam-se com o assunto dos direitos humanos sabem reconhecer que nenhuma incompatibilidade há entre pensar e executar políticas de direitos humanos e as ações do Estado e seus diversos agentes públicos, entre os quais os agentes das diversas polícias. Estabelecer e apregoar incompatibilidade entre agentes públicos, com funções de poder, e as diversas polícias e conceitos, práticas e políticas de direitos humanos é precariedade intelectual, adesão consciente à militância política antipolicial e anti-Estado ou má-fé pura.
No Brasil, o “debate” (e as aspas aí não sobram, pois, a palavra não nomeia com exatidão o que se vê no país hoje; principalmente se recorremos ao exame do que se diz nas chamadas “redes sociais”, e que prefiro chamar de esgotos: por tanta lama fétida que corre, por tanto vômito de ignorância desinibida, pretendendo se passar por opinião inteligente, e mesmo onde opinião comum quer ser reconhecida como saber científico ou filosófico… O tempora! O mores!), que se instalou sobre “direitos humanos”, divide as opiniões no fla x flu rasteiro do “contra” ou “a favor”, somente explicável pelos níveis de compreensão de grande parte da sociedade brasileira. Nem mesmo certos “pesquisadores” universitários que se ocupam com a pesquisa do assunto estão acima de níveis rasos de compreensão do assunto; igualmente, certas autoridades e agentes públicos não escapam de dar opiniões equivocadas sobre o tema. No nosso país, alguns dos ocupantes de cargos públicos carecem de ilustração: seja aqueles que ocupam funções de poder, seja aqueles que o Estado remunera nas universidades para ensino, pesquisa e extensão.
Todavia, opiniões como as que escutamos, no cotidiano de nossas cidades, segundo as quais “os direitos humanos defendem bandidos” (caso linguístico em que um conceito abstrato se torna sujeito oracional como se fora uma entidade, quase física), ou, inversamente, pela boca de certos “pesquisadores”, a opinião generalizadora (e, por isso, indemonstrável e fácil de refutar) que “a polícia brasileira persegue militantes de direitos humanos” ou que “o Estado brasileiro tortura e mata nas prisões”, como se fora uma ação institucional, o que, por má informação, poder-se-á levar a crer que, no país, temos um Estado de execuções sumárias, brutal, sem instâncias jurídicas, sem direito constituído, tornam-se tipos de generalizações, de um lado e do outro, que merecem repúdio e reparo.
É ignorante aquele que se incomoda com o conceito, políticas oficiais e ações em favor da promoção e respeito aos direitos humanos, produzidas pelo Estado, ONGs ou pessoas, por acreditar que “direitos humanos” correspondem ao socorro de indivíduos que praticaram assaltos, furtos, homicídios, estupros, entre outros crimes. É fato que estes são indivíduos que, mesmo praticantes de crimes e condenados na forma da lei, continuam a ter o direito de sua proteção pelo Estado contra qualquer violação que constitua ameaça às suas vidas ou a direitos que permanecem garantidos, e que não podem ser prejudicados nem subtraídos por condenações, estranhas à lei, que lhes privem de algum direito específico na previsão da lei. A opinião popular, entretanto, confunde isso com “proteção a bandido”, “direitos humanos para bandido”, isso porque, ao que parece, permanece no imaginário social de sociedades nas quais o Estado de Direito não se constituiu plenamente (nem culturalmente nem moralmente) uma ideia que poderia ser assim formulada: “se é bandido, nenhum direito resta”. Tal como se fora a figura do Homo sacer romano, descrita, por entre outros, pelo filósofo Giogio Agamben: um indivíduo sem nenhum direito. Na Roma antiga, era assim. De tal modo que, mesmo seu assassinato, não era reconhecido pela lei como crime. De todo modo, ainda nosso atraso em vários âmbitos, nossas leis já não toleram execuções sumárias, linchamentos, violações a direitos. Se temos esses fatos na vida social, não há nada na lei que seja sua institucionalização.
Do mesmo modo, apontar, de maneira leviana, por meio de generalizações abusivas, que nossas polícias e o aparelho de Estado (com suas diversas instituições) antagonizam ou são incompatíveis com ações e políticas de direitos humanos é produzir um falso pensamento sobre o assunto, pois, ainda que seja verdadeiro que temos um histórico de violências praticadas por agentes policiais (e nem sempre coibidos pelas autoridades e instituições do setor), não é verdadeiro que o fato seja extensivo às polícias como instituições ou aos policiais como categoria profissional como um todo.
Nesse sentido, soa absurdo o silêncio dos próprios grupos e agentes oficiais de defesa de direitos humanos quando diante dos diversos casos de policiais assassinados ou violentamente atingidos por ações de facções criminosas atuantes hoje nas cidades brasileiras ou outros criminosos, nas violações de seus direitos no próprio âmbito de suas atuações como servidores públicos ou nas agressões sofridas no atual tribunal do Facebook (onde os fascismos correm soltos, à direita e à esquerda, e no qual, como diz uma querida amiga, “tribunal que desconhece o devido processo legal, o contraditório, ampla defesa, presunção de inocência…”; aqui, quando se pensa no Direito, nos processos judiciais etc. Coisas que as selvagerias fascistas, da direita e da esquerda brasileiras, preferem ignorar), quando são atacados de forma vil, no anonimato, covardemente, como é comum hoje em diversos casos. Nossas polícias e policiais merecem o apoio e a defesa da sociedade como servidores do Estado que prestam os serviços de segurança pública, investigação e policiamento ostensivo. E convém aqui lembrar que as polícias, em todos os países, pagam o preço de “segurar a barra” dos efeitos perversos de sistemas de sociedade que produzem desigualdades, marginalizações e violências sobre as quais não têm, eles policiais, quaisquer responsabilidades. Mas são eles que os nossos sistemas de sociedade empurram para cumprir o papel de repressão sobre aqueles que caíram em desgraça pelos mesmos efeitos perversos.
Todas as deformações, em opinião e pensamento, sobre a relação entre direitos humanos, o aparelho de Estado e nossas polícias, e a relação destes entes com aqueles em conflito com a lei, cumprindo penas de prisão ou outras, somente servem ao prejuízo geral para a própria defesa e instalação de programas de direitos humanos no Brasil. E, nisso, é imperdoável que gente que está nas universidades públicas, pagas pelo Estado para ensinar e realizar pesquisas, pronuncie-se, no mesmo nível do senso comum (mas estes são muito poucos!), com ataques à polícia e ao Estado, numa conjuntura em que nossas polícias e o aparelho de Estado merecem todo o nosso apoio pelo desafio que têm diante de si para o enfrentamento de facções criminosas que, se deixarmos, tomarão conta de nossas cidades, se é que já não tomaram conta de algumas delas! O que não se torna demasiado pensar numa antiutopia na qual, em futuro próximo, viveremos em mundos como em Elysium…
Em nenhum país do mundo, onde políticas de direitos humanos foram institucionalizadas ou que se visa institucionalizar, a polícia foi colocada de lado, hostilizada, vilipendiada em discursos de cientistas, pesquisadores e verdadeiros especialistas do assunto. Em diversos países da Europa, Ásia, nos Estados Unidos e Canadá, assim como em países como a Colômbia e Chile, políticas oficiais de direitos humanos e ações sociais diversas foram realizadas e estão sendo hoje executadas integrando as diversas polícias: de investigação, de vigilância, de policiamento ostensivo etc. As experiências de “polícia comunitária” em países como o Canadá dão mostras que se pode ter políticas de segurança pública sem produzir oposições artificias entre população e polícia, direitos de cidadania e policiamento das cidades.
Políticas de segurança pública não podem excluir direitos humanos, como promoção de políticas de direitos humanos não podem excluir o trabalho das diversas polícias e demais forças armadas do Estado, que sejam encarregadas para políticas de direitos humanos. E somente se pode pensar em políticas de direitos humanos integradas a políticas de segurança pública se temos um Estado forte, capaz de agir, com polícias equipadas, competentes, protegidas, valorizadas. Estado forte aqui nada tendo a ver com Estado totalitário, ditatorial, nem de direita nem de esquerda. Mas o Estado forte liberal, neutral, moderno, assegurador de políticas públicas de bem-estar social, entre as quais políticas de direitos humanos.
Diferentemente, polícias precarizadas e um Estado fraco dificilmente terá capacidade se sustentar políticas de direitos humanos, que não podem ser pensadas apenas como reduzidas a poucos programas de “educação para direitos humanos em escolas” ou similares. Ora, que não se venha objetar que estou aqui reduzindo políticas de direitos humanos ao campo estrito da segurança pública. Políticas de direitos humanos, como programas e ações de direitos humanos, envolvem todos os aspectos da vida humana e da vida social coletiva. Em todas as esferas e âmbitos. Qualquer violação de direitos, em qualquer âmbito da vida dos indivíduos e grupos ou setores da sociedade é violação de direitos humanos, mas, para a questão principal que aqui abordo, sem tergiversações malandras, é o caso apenas de lembrar que aparelho de Estado, polícia e direitos humanos não são termos antagônicos em si mesmos, como certos “pesquisadores” em universidades e militantes de certos movimentos e ONGs insistem em pretender fazer crer. (Embora, não raro, sejam os primeiros a recorrerem à polícia e à ideologia punitivista para solução de conflitos. Mas a hipocrisia, no Brasil, que Sérgio Buarque de Holanda chamou de “cordialidade”, corre nas veias de muitos….).
Somente uma sociedade traumatizada por uma ditadura militar, conservadora e autoritária em seus “genes” sociais e históricos (e agora traumatizada por um divisionismo esquizofrênico que tem gerado o ódio ao pensar e o ódio à democracia – a verdadeira; não a falsa “democracia”, propalada por fascistas de esquerda, como por fascistas de direita), confunde o conceito e as ações de direitos humanos do modo como na terra brasilis se faz hoje; seja no senso comum, seja no senso douto, o dos “doutores” das universidades e dos “pós-doutores” (alguns, nas universidades, sem saber que pós-doutorado não confere título acadêmico, assinalam que são “pós-doutores”… é o Brasil dos títulos nobiliárquicos…. risível, patético!): juntos estão, para prejuízo da sociedade brasileira, confundem o entendimento do reconhecimento dos direitos humanos como condição sine qua non para a vida em sociedade, qualquer que seja ela. Pois, reconhecer direitos humanos, é reconhecer o direito do outro, do outro viver, ter direitos, direitos a existencialidade, direito fundamental, inalienável, instransferível, isto é, direito ao próprio reconhecimento como ser humano que tem direitos. Reconhecimento que, desde o filósofo alemão Friedrich Hegel, é considerado como coincidindo com a própria existência: “o estado de reconhecimento é a existência”. E que o filósofo canadense Charles Taylor, interpretando Hegel, disse: “o reconhecimento é uma necessidade humana vital”.
No Brasil, enquanto direitos humanos forem apresentados como antagonizando com o Estado e o aparelho policial, e enquanto forem traduzidos como “defesa de bandidos”, estaremos longe do avanço cultural, social, moral e civilizatório que necessitamos para o reconhecimento dos direitos humanos, isto é, reconhecimento do outro em seus direitos!