“Mulheres, jovens, pobres, que têm filhos pequenos, têm realmente direito de cursar o ensino superior em uma universidade pública? como este direito é assegurado a elas?”
Na semana do dia internacional da mulher este ano, um fato prático se tornou assunto entre os universitários, professores e servidores da UFRN: uma estudante matriculada na disciplina de “Introdução à sociologia”, ministrada pelo professor do curso de ciências sociais Alípio de Sousa Filho, leva sua filha de 5 anos para a sala de aula no turno da noite, por não ter com quem deixar a criança. Ao final da aula, o professor questiona a presença da menina e não permite que a mãe ou suas colegas falem, sob a justificativa que ele tem o poder sobre a sala de aula em que é professor. A mãe extremamente constrangida e abalada com a exposição, se retira da sala e o professor segue a tecer comentários em que narra sua preocupação com os prejuízos que situações como essas podem gerar à academia, já que a universidade recebe muitos recursos para a formação dos estudantes e por isso requer plena dedicação dos seus beneficiários e com a inadequação etária para uma criança de 5 anos o conteúdo ministrado em suas aulas.
Talvez só isso, não ficassem configurados danos morais à estudante, já que um(a) professor(a) realmente não tem uma obrigação legal ou regimental de permitir que uma mãe que não tem com quem deixar sua filha assista aula com essa criança em sua disciplina. Empatia não está na lei. Mas o pós-doutor Alípio vai além, e, após a saída da estudante de sala de aula, segue com comentários que explicitam sua posição de superioridade hierárquica, econômica e acadêmica em relação “àquela que nem deveria estar ali, por não ter condições pra isso”.
A utilização de todo poder simbólico que há por trás da sua figura, fica bastante evidente depois da divulgação do áudio em que começa afirmando que precisa dizer à turma que recebe 20 mil reais para ser professor da UFRN, que professores universitários são caros e estão na faixa de salário de apenas 13% da população, que a infraestrutura da universidade é igualmente cara e que não cabe a um estudante desdenhar de vultuosos investimentos dos quais não paga um centavo…
Segue dizendo que a estudante que levou a filha pra sala de aula não o conhece, não conhece o seu prestígio e pode ser expulsa da universidade, já que ele pode fazer uma denúncia à PROGRAD (Pró-reitoria de graduação) e, além disso, a estudante responder perante conselho tutelar, vara da infância e da juventude…
Um primeiro ponto que devemos ter em mente para refletir sobre esse caso e suas consequências, é a assimetria desta relação: professor de uma universidade pública, pós-doutor, estudou na Europa, salário de 20 mil reais e do outro lado, uma mulher, jovem, mãe, trabalhadora, começando a formação universitária, cujo único apoio institucional disponibilizado pela UFRN, especificamente para mães estudantes com filhos pequenos, é um auxílio-creche no valor mensal de R$ 100 reais (cem reais). As aulas da graduação normalmente são de segunda a sexta-feira, em pelo menos um turno inteiro. Assim, basta pensar um pouco do porquê muitas mães precisam levar seus filhos pequenos para a universidade: cem reais permite à estudante pagar alguém para cuidar da sua filha em quantas noites ao mês? Qual a burocracia para se receber esses cem reais? Quais alternativas são oferecidas pela universidade a estudantes nessa condição para que assista as aulas ou tenha abonadas suas faltas quando o professor a proíbe de entrar em sala com a criança? E de uma forma geral: mulheres, jovens, pobres, que têm filhos pequenos, têm realmente direito de cursar o ensino superior em uma universidade pública? como este direito é assegurado a elas?
Não bastasse todas as dificuldades que já enfrenta no seu cotidiano, a estudante Waleska Lopes, que trabalha durante o dia, precisou enfrentar uma situação extremamente vexatória no turno da noite e, mesmo tendo se retirado de sala quando negada qualquer oportunidade de se defender, sua imagem e conduta enquanto genitora continuaram sendo alvejadas por todo tipo de crítica de um homem que não lhe conhece e não sabe um terço do que ela enfrentou até chegar àquela universidade, ambiente que sonhou que significaria a porta para uma vida diferente, em que pudesse se qualificar profissionalmente e melhorar a sua atual condição social e econômica, mas que foi excessivamente hostil à sua condição de mulher e mãe. E isso tudo, logo no curso de ciências sociais, logo na disciplina do professor conhecido por pesquisas na questão de gênero.
Porém, é bom ver que as coisas estão mudando e que situações como essas não ficam mais fadadas ao desdém social. Está mais difícil controlar as informações e manter indivíduos imunes à análise e reprovação social de seus atos desrespeitosos à dignidade alheia. E ainda há quem diga que existe uma fogueira das redes sociais para queimar reputações, mas ironicamente comentários como esses vêm para defender brancos(as), em situação de privilégio econômico e social e que passam a ter sua hegemonia questionada.
Se o que ocorreu na UFRN abalar de alguma forma a moral desse professor, a “culpa” não é da aluna ou das redes sociais, mas dele mesmo ao proferir palavras tão mesquinhas no áudio em que afirma veementemente: “Ela encontre uma rede de solidariedade para cuidar da criança. Não consegue essa rede de solidariedade? Repense sua vida. Não tem que estar fazendo Ciências Sociais, não tem que estar estudando na universidade. Você só faz isso se tiver condições. Agora não vai impôr à instituição coisas que não são assimiladas pela instituição (…) ‘ah, eu sou pobre, não tenho’. Problema seu, a universidade não tem problema com isso, se vire”.
Juliete de Abreu é Advogada, Vice-presidente da Comissão do Estudante de Direito OAB-RN, Mestranda do PPEUR UFRN e Ativista da Anistia Internacional em Natal-RN.