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No Estado antissocial brasileiro, Marielles são corpos matáveis

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Porque o Estado, constitucional ou autoritário, qualquer que seja a forma de governo, segrega permanentemente um regime de exceção. O mais democrático dos Estados é sempre regime de exceção para enormes contingentes. Loucos, prostitutas, prisioneiros, negros, hispânicos, árabes, curdos, judeus, ianomâmis, homossexuais, travestis, crianças, operários irão nascer e morrer sem terem conhecido o comedimento do Leviatã. As graves violações dos direitos humanos pelo Estado revelam a rotina do Terror no cotidiano das populações.

(Paulo Sergio Pinheiro in Ética)

 

É do conhecimento de todas as mulheres subalternas que os Estados-nações europeus foram forjados nas experiências de guerra entre outros estados nacionais em construção. Foi inicialmente contra a ameaça do grande “inimigo externo” que se construiu o Estado nacional moderno. Em suma, há um longo parentesco entre o “Estado de Terror” ou o “Estado de Guerra” do passado e o moderno Estado de Direito do presente.

No Brasil, contudo, a construção social do Estado parece ter seguido uma lógica inversa. Primeiro, o Estado brasileiro se formou contra os seus “inimigos internos” para depois nomear ou delirar com suas fantasiosas “ameaças externas”. O inimigo interno é o “povo” subalterno, esse eterno corpo degenerado e perigoso aos olhos das elites econômicas e culturais. Em nossa terra, instalar uma “sociedade disciplinar” é custoso demais para os arautos da ordem. Para estes, parece mais prático e moralmente aceitável instaurar uma “sociedade antissocial”.

Aqui, o “social” é sempre um suspeito de dupla marginalidade. De habitar “à margem” da ordem e de ser habitado por “marginais da ordem”. Contra esse “social suspeito” se produziram e ainda se produzem políticas de segregação e extermínio controlado. E as subalternas sabem: a política militarizada da segurança pública é uma dessas tecnologias modernas de extermínio racional e controlado à serviço da sociedade eugênica liberal.

Porque a política de militarização da segurança pública não produz nada mais do que tecnologia de terror dirigida aos corpos subalternos, máquinas de assassinato em massa de corpos dissidentes, práticas estatais de eugenia social e racial.

Como no Atlântico Norte, também em nossa sociedade do Atlântico Sul genocídios e etnocídios são justificados em defesa da “ordem” e do “progresso”. Mas somente no Brasil essa justificação alcançou o status simbólico mais expressivo; tornou-se um símbolo de um nacionalismo sem povo.

No Brasil, a demanda coletiva de “ordem” tem servido para legitimar o sequestro dos direitos civis mais elementares das populações subalternas. Moradoras de favelas têm suas liberdades individuais suspensas em nome da segurança e da ordem. É claro que as mulheres da periferia desejam segurança em suas vidas cotidianas, mas isso não pode ser confundido com a suspensão de suas liberdades e de seus direitos mais elementares. Enganam-se os que acham que uma mulher negra e moradora de favela que aspira por segurança, está de acordo com a invasão diária de policiais em sua residência, com agressões verbais e físicas contra seus filhos, tudo em nome da “ordem”.

O discurso da ordem pode encontrar apoio coletivo de muitos subalternos, mas até o momento em que seus corpos não sejam matáveis. Depois de ultrapassar essa fronteira de sangue, não há apoio popular que reste, apenas revolta e ódio acumulado. Mas para os defensores da ordem e do progresso, os sentimentos de injustiça das subalternas não são justificáveis. São até intoleráveis.

Foi contra essas tecnologias estatais de genocídio étnico que Marielle Franco lutava. Contra a justificação “moral” (e imoral) do extermínio dos povos periféricos de nossa sociedade. Marielle sabia muito bem para onde se dirigia as “novas” políticas militarizadas de “ordem e progresso”. O alvo do presente, como no passado brasileiro, era e são os corpos subalternos e periféricos. Mulheres e homens das favelas, negras e negros das periferias. Marielle escutava e sentia diariamente os gritos das vozes dissidentes. Porque aprendeu desde a tenra infância a escutar e sentir a dor de corpos que também habitam sua pele. Sua indignação e sentimento de injustiça era dor encarnada. Dor encarnada em um corpo de mulher negra e periférica.

Hoje o Brasil tomou conhecimento que sua carne negra não era tão “barata” quanto se acreditava. Alguns mercadores de vida e de morte pagaram um preço elevado pela sua carne sangrada. Mas podem pagar ainda mais se a justiça for uma profissão de fé das mulheres negras e subalternas. Desejamos e exigirmos saber quem são os mercadores da carne negra de Marielle. Porque a carne sangrada de Marielle habita nossos corpos também. Não! Essa carne negra não foi barata no mercado! E também não vai ser barata na justiça.

Não! Não consigo dizer “Marielle, presente!” Para mim e para outras milhões de mulheres negras brasileiras, Marielle está ausente! Presente está seu corpo sangrando, à espera de justiça.

Dia 14 de março de 1914 nascia Carolina de Jesus! Dia 14 de março de 2018, desencarnou Marielle Franco!

“Onde estaes Felicidade?”