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Escola sem Partido: retrocesso e autoritarismo

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O fortalecimento do movimento intitulado Escola sem Partido é um dos fatos que ilustram a intensificação da onda retrógada e conservadora em nosso país nos últimos anos. Este surgiu com o objetivo de apontar “doutrinação ideológica” na conduta de professores e nos livros didáticos e ainda, em ponto de maior afetação, apontar a existência de “ideologia de gênero” nas discussões sobre sexualidade nas escolas.

Mas ao analisar pacientemente os discursos e perfis dos defensores deste movimento, vamos perceber inconsistências e o autoritarismo que está por trás de seus elegantes disfarces. Os envolvidos com o movimento Escola em Partido são pessoas oriundas de religiões fundamentalistas neopentecostais, defensores do liberalismo e até de segmentos fascistas, como seguidores de Bolsonaro. Ainda, todos foram a favor do golpe (conspiração política-midiática-empresarial) que depôs a presidenta Dilma Rousseff. Mas, segundo os mesmos, o movimento não tem caráter ideológico e político.

A fragilidade dos discursos dos defensores da Escola sem Partido chega a ser aberrante, pois é impossível a existência da desejada neutralidade no ato de ensinar. Todo ato humano e todo discurso tem em sua essência uma intenção, parte de um lugar, de uma visão de mundo, ou seja, em tudo encontraremos vestígios de ideologia (explícita ou implícita). Na verdade, o objetivo de buscar neutralidade é um disfarce autoritário para apontar ideologia e intenções apenas na inquietação que está presente na promoção dos debates sobre as desigualdades e sobre a realidade que move e cerca os sujeitos que compõe o ambiente escolar.

Nenhuma sociedade é neutra (política, comunicação, religião, sexualidade). Em todos os todos os atos e movimentações dos sujeitos que a compõe possuem uma intenção e um teor político que fomenta e movimenta o funcionamento da mesma. Ao refletirmos sobre a historicidade da sociedade brasileira vamos perceber raízes constitucionais coloniais, escravocratas e autoritárias e ver que intenções têm um concentrador de terras, uma rede de televisão, uma feminista ou um militante do Movimento dos sem-teto.

Os defensores do Movimento Escola sem Partido não falam explicitamente em suas matrizes ideológicas que fomentam seus discursos, mas apontam existência de ideologia apenas onde enxergam pensamento de esquerda ou libertário. Para deixar mais claro o que pensamos sobre ideologia nos recorremos a filosofa Marilena Chaui (no livro O que é ideologia): “A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos”.

O próprio recorte temporal da existência deste movimento é datado. Ele surge em 2004, a partir da exposição das propostas do governo federal (governo petista de esquerda moderada) para educação. Não surgiu durante a ditadura militar e nem no governo de Fernando Henrique Cardoso. Qual o motivo? Porque também carrega elementos intencionais, históricos e políticos em seus discursos. E isso é o que conhecemos por ideologia, que este movimento apontar apenas em seus opositores.

Então, questionamos, que, sob o ponto de vista do movimento Escola sem Partido, quem teria o poder de definir o que é neutro ou ideológico? Pois todas as palavras e todos os discursos carregam sentidos, significados e teores de seus lugares de construção, do momento político e histórico. Por exemplo: a pesquisadora Judith Butler veio ao Brasil algumas vezes e só houve manifestação contrária (com participação de defensores da Escola sem Partido) apenas em sua última visita para palestra em SP (no seminário internacional Os fins da democracia). A carga de ódio e de desinformação de tal manifestação tem relação direta com a recente onda conservadora e autoritária que tomou o país desde 2015, em que tudo que questiona a tradição e os “bons costumes” deve ser atacado, difamados e hostilizado mesmo que não haja fundamento, debate e questionamento característico de uma sociedade democrática.

Essa recente manifestação faz parte de outra grande preocupação deste movimento, que é o que eles chamam estranhamente de ideologia de gênero. Segundo os defensores da Escola sem Partido, a escola não deve promover debate sobre a diversidade e construção histórica/cultural das sexualidades, com a preocupação de que as crianças e jovens possam “mudar” suas orientações sexuais em função disso. Seus discursos sobre “ideologia de gênero” partem de uma visão homogeneizadora (determinista, biológica e generalizante) sobre o humano, que não reconhece a orientação sexual de cada sujeito como resultante de demandas e contingências subjetivas, singulares e psíquicas.

Pensemos na heterossexualidade como parâmetro de normatividade em nossa cultura. Os filmes e novelas que são exibidos na TV são em sua maioria esmagadora de temática heterossexual e que por sua carga de influência não deveria existir homossexualidade. A heterossexualidade como modelo é exposta e mesmo assim existem homossexuais para demonstrar que suas orientações sexuais não foram construídas pelo que é visto e estimulado pela cultura da sociedade que fazem parte.

O projeto de lei defendido por este movimento inclui proposta de se promover nas escolas a INSTRUÇÃO SEM REFLEXÃO e que o professor passe a ser mera ferramenta de transmissão de conteúdos, sem que possa contextualizar os valores e pertinência dos mesmos.  Algo muito próximo do tecnicismo promovido na educação brasileira durante a ditadura militar. O professor silenciado e sem liberdade de expressão em seu exercício profissional teria que basear seu trabalho num explícito “ensinar a contar, ler e escrever”.

Um dos argumentos deste movimento é que quem é responsável pela educação das crianças e jovens é a família e a religião e a escola não pode confrontar ou contrariar o que foi transmitido por estes. Não percebem uma grande confusão entre educação formal e informal. A educação fornecida pela família não é a mesma da escola. A educação fornecida pela escola objetiva a construção da cidadania e promoção do convívio com as diferenças e o lidar com a diversidade de valores numa vida em sociedade.

A existência do debate não objetiva confrontar a formação familiar trazida pelo aluno e sim ampliar sua percepção, reforçar sua visão de mundo, suas convicções através do reconhecimento das diferenças e diversidade de pensamento numa sociedade democrática. Alguns pais não querem tais assuntos nos currículos escolares, mas a escola não deve trazer abordagens e temas que agradem o desejo dos pais, mas o diferente para trazer o sadio confronto/debate e não convencimento e “doutrinação”, como aponta grosseiramente o movimento Escola sem Partido.

Numa sala de aula que comporta diversidade de orientação, com alunos ateus, evangélicos e umbandistas, liberais e esquerdistas deve ser fomentado o debate e diversidade, o respeito a diferença e a promoção do estudo sobre as diversas e variadas formas de sociedade. A atmosfera de pluralidade será a mais preciosa ferramenta que um professor possa ter para a difusão de valores civilizatórios e democráticos diante daqueles que são sujeitos em formação e que possam se tornar adultos com plenas condições de exercer cidadania e respeitar as diferenças no convívio em sociedade.

É perceptível que nas escolas (públicas e particulares) a existência de professores de variados olhares de mundo, condutas e ideologias. Vamos encontrar professores esquerdistas, ateus, evangélicos, anarquistas, católicos, budistas. A visão de mundo destes professores sempre está presente no momento de debate e transmissão de conteúdo (impossível dissociar). Uns são a favor da distribuição da terra e da renda e outros são a favor da tortura e da volta da ditadura militar. Mas o movimento Escola sem Partido está preocupado apenas com a existência dos professores de apenas um segmento ideológico.

Uma das maiores de dificuldades dos segmentos autoritários, conservadores e religiosos de nosso país é exatamente o lidar com a diversidade. Comumente são difusores do ódio e da intolerância e veem na ampliação dos debates civilizatórios e democráticos dos últimos anos uma grande ameaça á seus lugares de privilégio e desejo de comportamentos hegemônicos. E uma das ferramentas para conter e combater o avanço civilizatório e democrático nas escolas é a utilização do disfarce autoritário (pois oficialmente dizem estar preocupados com a educação e liberdade) chamado Escola sem Partido.

Um dos disfarces discursivos deste movimento é intenção de cuidado e proteção com as crianças e jovens diante de professores “doutrinadores” e “militantes”, mas percebe-se em seus teores ideológicos a tentativa de controlar os sujeitos e coisificá-los em nome da manutenção da tradição e do status quo. Dentre estes disfarces discursivos presentes no site deste movimento vamos encontrar linguagem simplista baseado no senso comum, que reduzem questões humanas altamente complexas à frases ufanistas de teor autoritário e repressor deste que diz não ter “intenções políticas e ideológicas”.

Uma estratégia para combater a promoção do debate e reflexão é retirar a importância do papel do professor (potencial criminoso que deve ser vigiado), tido por este movimento como profissional que não merece confiança e são suposto doutrinador. O que corrobora tal estratégia é o fato deste movimento ter como base o Código de defesa do consumidor (!!!). Seu idealizador (advogado Miguel Nagib) diz que “somos consumidores dos serviços prestados pelos professores”, retirando toda a potencialidade da escola e do professor como ferramentas essenciais na formação de cidadãos e do respeito à diferença, colocando inescrupulosamente a educação na lógica do consumo.

O que estaria por trás deste discurso de defesa do consumidor na educação? Formar consumidores e não cidadãos capazes de refletir sobre sua realidade e a sociedade da qual faz parte. Tudo muito coerente, já que os defensores do movimento Escola sem Partido também são defensores das políticas liberais e do mercado financeiro, que necessita apenas de sujeitos produtivos, acríticos e obedientes.

Também é perceptível que as intenções deste movimento têm afinidade com a desvalorização da educação e da cidadania no Brasil, cada vez mais escancarada. As elites de nosso país já deixaram claro que seus filhos não necessitam de educação cidadã (democrática e civilizatória), mas apenas ferramentas para obter diplomas e enriquecer. Por isso, as escolas particulares entraram na lógica da educação mercadoria, tratando seus alunos como clientes (que sempre tem razão) e professores com meros prestadores de serviços destes.

O autor deste texto (que logo será chamado de comunista, petista, esquerdista, etc.) parte de um lugar ideológico, defende que a escola como cenário que promova o lugar dos alunos como sujeitos ativos em seus próprios processos formativos. E vê o professor como sujeito problematizador da realidade, que proporciona a criticidade e expansão da visão de mundo (seja qual for sua orientação religiosa ou política) de cada aluno.

Mas lamentavelmente estimular a reflexão e o discernimento é considerado por conservadores e segmentos autoritários como “doutrinação ideológica”. Fazem essa acusação sem dizer claramente o que é doutrinação ou o que é ideologia. Seus discursos partem de um lugar social e político que deseja apenas sujeitos produtivos, sem capacidade reflexiva, que não atrapalhe o andamento dos “bons costumes” de uma sociedade marcada pelas raízes históricas (escravocratas e autoritárias) e por violentas desigualdades que estes segmentos tentam ocultar no cotidiano.

Para finalizar, afirmo que a melhor ferramenta democrática e civilizatória para combater a ignorância e o autoritarismo é o debate. Que fomentemos o diálogo e a diversidade de pensamento e que não sejamos omissos no ato de desconstruir com informação e base científica os argumentos de variantes do retrocesso como o Movimento Escola sem Partido.