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Libertália: entrevista com Wagner Uarpêik

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Wagner destoa de uma geração natalense que receia em fazer grandes apostas, que passeia na grande área mas teme em chutar no gol. O escritor potiguar é um atacante e fez seu lance. Seja mirando as redes ou levantando cruzamento, merece ser lido pelo público.

 

Em algum remoto bar de Neópolis, desses de praça, me aguardava Wagner, único cliente, e uma cerveja. Trazia consigo um exemplar recém confeccionado do seu primeiro livro, Libertália: Pirataria Anarquista & Anarconinjismo, envolto em uma sacola negra — “para que não molhe”, diria depois. Era uma noite chuvosa, eu estava a pé e não segui seu conselho de trazer um guarda-chuvas. Poucos dias atrás, ele tinha me convidado para entrevistá-lo em decorrência do lançamento do livro. Minha ida a Natal por questões acadêmicas coincidiu com a fabricação das primeiras tiragens.

Estava orgulhoso, pois tinha ajudado a fazer os exemplares com a mesma mão que os escreveu. Tentei indagá-lo sobre o conteúdo do livro. “Prefiro que o leia, primeiro”, respondeu. O livro conta a história de Julian Lobstein e seu bando anarquista – os libertalianos. A filosofia de ação do grupo é exposta em dois manifestos: o Manifesto Anarconinja e o Manifesto Anarcopirata. O conto é um convite à reflexão e crítica sobre o modus operandi das formas mais tradicionais de militância. O caminho ninjista apontado pelos libertalianos é a ação sorrateira e certeira, sem qualquer aversão ao saque pirata.

Wagner destoa de uma geração natalense que receia em fazer grandes apostas, que passeia na grande área mas teme em chutar no gol. O escritor potiguar é um atacante e fez seu lance. Seja mirando as redes ou levantando cruzamento, merece ser lido pelo público. Ele cultiva o que Nietzsche chama de “um grande orgulho”, e os gregos, de desmedida (hybris), o daemon que alimenta em nós a insolência que tanto irritam os deuses. O preciosismo como encara seu primeiro filho literário é reflexo disso. É um Renato Gaúcho das letras. Se sua aposta foi muito alta, o tempo e o leitor dirão.

Mas jamais poderão dizer que não fez nada.

Confira a entrevista:

Em determinado momento do livro você escreve: “e isso continuará sendo mais um poema, até que você viva nossa poesia”. A matéria-prima do escritor, mais do que palavras, é feita de vivências, ou do modo como ele se relaciona com elas. Sendo assim, quais vivências lhe influenciaram na escrita do livro?

Nos acostumamos a pressupor que as obras literárias são demasiadamente confessionais ou biográficas. Esse concretismo tão moderno pode nos levar a fechar um livro antes de escancará-lo, a ancorá-lo antes de navegá-lo com grandeza. Sim, um escritor de verdade escreve com o próprio sangue e anseia doá-lo! Mas como tantos outros contos, poemas e romances que contrariam a expectativa biografista, Libertália é, sobretudo, filho da imaginação. Claro, uma imaginação encarnada, mas, ainda assim, um laboratório fantástico.

Foto: Sandra Erickson no lançamento do livro em Natal

Um dos preceitos do anarconinjismo é a luta nas sombras, anônima, como um contraponto a grupos anarquistas como os Black Bloc – que enfrentam, com alarde, o Estado onde ele é mais forte, ou seja, no enfretamento físico. Libertália afirma que grupos assim acabam agindo como uma horda acéfala, com poucos resultados práticos, e que protestos e ocupações são armas limpas demais contra um sistema tão sujo. Nesse sentido, a tática marcial ninjista prega um combate mais ofensivo e menos simbólico. Mas como bandos carniceiros, piratas e urubuístas podem desferir golpes tão certeiros em instituições tão estabelecidas?

Julian Lobstein e os libertalianos responderiam bem melhor que eu. Na verdade, já o fizeram – e de maneira relativamente minuciosa, inclusive. Quanto a mim, diria que as lutas de boxe nos oferecem inúmeros exemplos de grandes lutadores que foram derrubados com o soco certo, no momento certo, no lugar certo.

No anarquismo pregado pela “Imandade Libertália” há um combate sobretudo à civilização, porém sem um retorno ao período neolítico, ou uma adesão ao anarcoprimitivismo. Nesse sentido, há um distanciamento dos anarquistas clássicos, do séc XIX, que ainda apostavam em um modelo civilizatório que prescinde do Estado, baseando-se ainda em uma noção moderna de progresso. No entanto, o Manifesto Anarconinja propõe um combate à civilização em nome do “melhoramento moral e intelectual da espécie”, que me parece condizente com a noção de progresso; desse modo, como conciliar a crítica à civilização com o conceito de progresso?

Se o meu livro fosse uma cebola, diria que aparentemente você comeu as primeiras camadas dela, deixando a chamada “moral da história” intacta, no núcleo central. De toda forma, sua preferência pela teorização anarquista que recheia a saga dos anarcopiratas e anarconinjas sintomatiza uma tendência majoritária: gostamos de nos refletir no que lemos.

Além desse espelhismo narcisista que ameaça a boa leitura, os escritores – especialmente os menos, digamos, democráticos – devemos aprender a compreender e aceitar uma verdade de consequências ainda mais amargas: o grande leitor é sempre uma espécie de amigo íntimo da obra. Portanto, quando aviso por aí que Libertália é uma esfinge, não é precisamente uma homenagem à arquitetura egípcia. Quem não decifrar as lições mais profundas desse pequeno conto irá, necessariamente, ser devorado pela trama da história, ou seja: acreditará que a trama é um mero álibi para defender ideias e práticas anarquistas, quando, na verdade, convido para uma viagem muito mais ampla, longa, exigente, dadivosa. Nesse sentido, a arquetípica lenda dos libertalianos nos serve de isca para fisgar nosso mundo, nossa época, nossos dramas, nossas tragédias…

E então, para minha surpresa, volto à sua pergunta (até por que, neste tema específico, Lobstein e eu provavelmente estamos de acordo): a aposta no melhoramento espiritual da espécie é ampla demais para ser trancafiada na estreita cela do “progresso” ocidental; na verdade, o amor pela humanidade é o inverso da obsessão tecnocrata, neoista e frequentemente involutiva que milhões de pessoas chamam de “progresso”. Embora as superstições ocidentais tenham triunfado no imaginário social, vale a pena higienizar expressões como “progresso” e “evolução”, e devolvê-las ao seus ambientes etimológicos originais, mais sintonizados com o enobrecimento do animal humano.

O anarcopirata se contrapõe à figura do revolucionário asceta, de tipo franciscano, pobre, maltratado e maltrapilho. Ele nos convida ao saque através de crimes justos, sem violência física, seguindo a sabedoria pacífica e carniceira do urubu, cujo lema é o menor esforço, para com isso fugir da desonestidade de um trabalho honesto e uma vida medíocre. Defendendo que os princípios anarquistas não devem comprometer a felicidade e, afinal de contas, “dinheiro é liberdade” e um belo banquete pode ser algo revolucionário. Sendo assim, como ser um anarcopirata sem cair em um mero hedonismo?

Os personagens libertalianos me parecem suficientemente austeros, disciplinados e idealistas para não ser confundidos com libertinos ordinários e boêmios vulgares, você não acha?

Bem, de qualquer maneira, voltemos à cebola: não se trata de atrair adeptos para minha sociedade secreta anarquista – aliás, uma das maneiras mais cretinas de fazê-lo seria através de um livro de circulação pública –, mas de jogar lenha na fogueira do pensamento, antes de tudo. Os bons leitores compreenderão que meu conto é mais filosófico que político, mais literário que literal. Infelizmente, esse conselho dificilmente impedirá que a maioria das pessoas encontre, na história, sobretudo o que deseja encontrar.

Não “mastigo” mais Libertália porque prefiro que os leitores percorram por si mesmos os caminhos que indico – assim é mais digno e divertido para mim…e para vocês.

Você escolheu lançar seu primeiro livro pela editora Sol Negro, que produz livros artesanais em pequenas tiragens. O que motivou essa escolha? Como você analisa o mercado editorial natalense?

Admiro a competência editorial da Editora da UFRN, a garimpagem memorialista do Sebo Vermelho, a persistência da Jovens Escribas, e o preciosismo da Sol Negro.

Meses atrás, Márcio Simões, o capitão desse oásis editorial chamado Sol Negro, me convidou para lançar dois livros. Ele bancou a primeira tiragem de Libertália. O estilo reservado, artesanal e plasticamente rebuscado da Sol Negro combina com meus dois primeiros libelos. Há certa dignidade e charme em fazer livros como antigamente, um por um, como o mago que forja amuletos mágicos, o alfaiate que faz vestidos sob medida e por encomenda. Em Natal, não conheço ninguém que faça isso melhor do que Márcio e sua companheira.

Por outro lado, publicar com Simões é uma bela maneira de celebrar nossa amizade.

Embora as vantagens financeiras e logísticas das grandes editoras me atraiam, não as procurei. A pequena tiragem, longe de necessariamente condenar o escritor a ser lido apenas pelos amigos e colecionadores de livros raros, desafia o alcance da sua voz. Eu fiz essa aposta, e tem valido a pena!

 

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Foto da portada:  John Nascimento

Site de Wagner Uarpêik