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Os usos do passado no turismo histórico-cultural: o caso do Barão de Ceará-Mirim.

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Por Diego José Fernandes Freire (professor de história).

Nos últimos anos, uma prática de uso público do passado tem chamado a atenção dos estudiosos, sobretudo na área de história e arquitetura. Trata-se do turismo histórico-cultural, movimento que, ligado ao capitalismo de serviços de décadas finais do século XX, tem aproveitado os vestígios materiais e concretos do passado para oferecer pacotes de entretenimento, lazer e conhecimento, disponíveis no mercado turístico. Na era da indústria cultural, a história e as relíquias do passado entram no jogo capitalista da oferta e do consumo. Se o passado seduz e fascina, nada mais coerente com o sistema econômico atual do que mercantilizá-lo, transformando-o em uma mercadoria para um variado público de professores, estudantes, jornalistas, artistas etc.

Foto: Alex Fernandes

Assim, cidades, prédios, monumentos e fatos históricos são usados como elementos atrativos para a vinda de visitantes interessados na história local. Em cima disso, monta-se todo um roteiro diferencial de atividades para além das intelectuais, a fim de proporcionar ao turista não só conhecimento cultural, como também diversão, satisfação, relaxamento e distração. Com tal programa, garante-se um serviço singular de qualidade, capaz de agradar ao cliente, fidelizando-o e tornando-o um divulgador do serviço consumido.

No estado do Rio Grande do Norte (RN), em razão do forte turismo praieiro (resumido na famigerada expressão Sol e Mar), o turismo histórico-cultural não tem tanta expressividade. Porém, iniciativas locais e pontuais podem ser encontradas, sobretudo no interior do estado. Nesse sentido, destaca-se o empreendimento turístico de Ceará-Mirim, que tem nos engenhos históricos um importante ponto de atração de visitantes. Tal cidade, situada a 28km de Natal, costuma receber visitantes das mais diferentes regiões do RN e do Brasil, ofertando a estes um passeio por vários engenhos da época imperial. Situado fora do perímetro urbano de Ceará-Mirim, o roteiro dos engenhos encontra-se relativamente bem sinalizado em várias placas, indicando ao público a presença de atrativos histórico-turísticos.

Além dessa propaganda oficial, a rota pelos engenhos conta também com um importante divulgador e animador, Francisco José Ferreira, guia histórico que encarna e representa o famoso Barão de Ceará-Mirim, Manoel Varela do Nascimento (1802-1881). Tal guia é o principal responsável pelo roteiro dos engenhos de Ceará-Mirim, desde o primeiro contato de marcação da turnê até a visita propriamente dita. Através dele, o público conhece todo o complexo espacial ligado ao mundo dos bangues. Casas-grandes, igrejas, pelourinhos e canaviais são expostos através de sua condução turística. Fantasiado nos moldes de um barão imperial, Francisco José Ferreira incorpora uma estética aristocrática rural, a fim de proporcionar à sua clientela uma imersão no universo dos engenhos ceará-mirinense. Seu trabalho de guia, a exemplo de vários outros espalhados pelo Brasil (vide a fazenda Vassouras, no Rio de Janeiro, que oferece toda uma ambientação histórica para sua clientela), busca proustianamente uma revivência do tempo perdido. E aqui se situa um uso público do passado que precisa ser discutido.

De acordo com o relato de alguns docentes, estudantes, moradores da cidade de Ceará-Mirim e demais visitantes que realizaram o périplo turístico pelos engenhos da cidade supracitada, é comum o “Barão” reencenar algumas práticas de castigo realizadas na época da escravidão. A fim de trazer o passado para o presente, aproximando essas duas temporalidades, quase sobrepondo a primeira à segunda, realiza-se um “faz de conta” em que os visitantes tornam-se, por um instante, escravos, e o “Barão” vira um senhor com um grito possante de mando e comando, empoderado ainda por um chicote que acompanha sua fala rude e estrala firmemente em suas botas. Com isso, está criada uma mise-en-scène do passado, pronta para ser fotografada, filmada e… aplaudida (uma amostra dessa cena pode ser vista no vídeo que se segue, aos 5min.55s: https://www.youtube.com/watch?v=joqX34PDwEg).

Francisco Ferreira, pedagogo e guia turístico, conhecido como “Barão de Ceará-Mirim” (Foto: Junior Santos, Tribuna do Norte).

O costume colonial do transporte senhorial é também outra performance encenada pelo “Barão” de Ceará-Mirim. Suspendendo novamente o papel tradicional de guia histórico (aquele que só mostra e aponta), um espectro negro do senhor Manoel Varela do Nascimento retorna das brumas do tempo e deita-se em uma liteira, para ser dramaticamente conduzido por um público que, paradoxalmente, não sente nenhum desconforto para além do físico em repetir uma cena típica da escravidão brasileira, em que um homem abusava de seu poder sobre tantos outros homens. Ainda que a locomoção seja por poucos segundos, observa-se mais uma vez uma atualização e encenação teatral do passado.

Além dessas cenas, e da própria estética do guia, o próprio discurso do “Barão” é marcado por uma encenação do passado. Francisco José Ferreira expõe suas peças históricas a partir de uma linguagem marcada pela primeira pessoa, em que a voz narrativa-autoral é remetida ao Manoel Varela do Nascimento. Eis alguns exemplos da sua fala expositiva: “aqui era o meu quarto”; “esse era o meu maquinário”; “aquela era minha casa de veraneio”. Tais expressões obedecem a mesma estratégia de presentificação do passado, criando a sensação no espectador de que o Ontem veio para o Hoje, e se mostra realisticamente, diante dos olhos humanos e dos celulares. Na arte histórica do “Barão”, passado e presente se encontram.

Diante desse uso teatral do passado, cabe o mesmo questionamento que Françoise Choay, estudiosa do patrimônio histórico francês, fez a alguns equipamentos urbanos atravessados por uma “demanda de lazer e distração da sociedade: onde fica o acesso e o reconhecimento dos valores intelectuais e estéticos que há no patrimônio?”.

A maneira como o “Barão” manipula o passado imperial da sua cidade parece privilegiar o olhar da casa-grande, a visão do senhor de engenho. A partir deste lugar de direção e de fala, o passado que se descortina para os visitantes ganha as cores, o cenário, os gestos e a perspectiva do grupo social hegemônico na época da escravatura oitocentista. As práticas de castigo contra o escravo, bem como o transporte senhorial a partir da liteira, podiam ser divertidas, exóticas e legais para um membro da aristocracia agrária, jamais para um escravo ou para um negro liberto. A perspectiva dos “de baixo”, o olhar da senzala, dos homens e mulheres que sofridamente sustentaram o universo dos engenhos, não está devidamente contemplado.  As contradições do passado banguezeiro, a dominação e a exploração social, a luta e a resistência aos senhores barões e às sinhás baronesas perdem espaço para as igrejas e cafuás, para os instrumentos de castigo e de produção açucareira. Até as lendas de assombração invisibiliza uma perspectiva contrária ao senhoriato. Aqui, a ação do “Barão” se junta a toda uma tradição que oculta a herança e a contribuição afro-brasileira e indígena no estado. Até quando esta perspectiva marcará o espaço público do RN?

Arquivo do autor.

Um exemplo bastante sintomático basta para se exemplificar esse olhar senhorial do “Barão”. Como um empreendimento ligado ao turismo histórico-cultural, o roteiro dos engenhos de Ceará Mirim vende várias souvenirs, dai porque outro importante adereço do “Barão” – além do chicote, das botas e do fardário aristocrático-imperial – é uma máquina de passar cartão de crédito... Entre os produtos comercializados (cachaça, licor, cocada, santinhos etc.), todos com a devida marca do “Barão”, encontra-se uma rapadura com um formato de um seio de mulher. A cor escura da rapadura evoca as mulheres negras sobre as quais o Barão exercia o seu controle e sua posse. Impossível não associar às amas de leite que “davam” suas tetas para os filhos e filhas da sinhá.  Símbolo da mulher, do gênero feminino, o seio é simbolicamente capturado e aprisionado. De fato, no passado dos engenhos ceará-mirinense, tudo é do Barão. Nada escapa do seu olhar.    

Não se trata de cobrar do “Barão” um uso científico ou profissional do passado, ligado a historiografia universitária. Como se sabe, o passado não é monopólio dos historiadores, de modo que tal temporalidade independe, inclusive, da historiografia para existir socialmente, embora guarde importantes relações com este saber. Nem tampouco se trata de censurar o uso turístico do passado ceará-mirinense, exigindo sua interdição. Até porque é notória a luta do “Barão” pela preservação da história e memória locais. Mais do que uma postura ofensiva, o que está em jogo é o uso público do passado, e em que medida tal uso fomenta uma reflexividade temporal, capaz de promover uma postura ética e democrática com o mundo de Ontem e de Hoje.

Desde os anos 1980, na esteira do chamado “giro ético-politico”, os historiadores estão atentos para os usos e abusos sociais do passado, menos em uma atitude denunciatória do que com uma postura cidadã. Como contribuir para uma esfera pública em que os usos do passado fomentem valores democráticos e posturas de igualdade e solidariedade sociais? Tal é a questão essencial que a historiografia vem fazendo nos últimos anos, em especial quando se trata de passados sensíveis e traumáticos.

Por mais que o discurso do “Barão” possa ser desconstruído por quem tem uma certa criticidade, não se pode ignorar o fato de que há uma produção simbólica construída, que um dado uso público do passado foi e é efeito, colocando-se fortemente no espaço publico e atingindo vários grupos sociais do país. Como Lembra o filósofo e sociólogo alemão Jurgen Habermas, por mais que uma esfera publica democrática admita como essencial a pluralidade de visões e práticas sociais, deve-se sempre ter um cuidado, um zelo de que tal universo favoreça a uma cultura de igualdade e fraternidade entre as classes sociais. O passado por si só, por mero interesse erudito ou por interesses comerciais, tem claramente seus limites para a promoção de uma sociedade democrática, ciente do valor das mais diferentes origens históricas e sociais.

A espetacularização do passado, tão ao gosto do turismo histórico-cultural, em nome de uma experiência fetichista do que ocorreu, não parece ser o melhor caminho para assegurar o comparecimento dos variados grupos sociais no palco histórico do presente. Um uso público do passado que favoreça a ampliação de uma esfera publica democrática deve levar em conta aquilo que Paulo Ricoeur denominou de justa memória. Diante do apagamento parcial ou total dos vivos contra uma dada população dos mortos, há que se estabelecer uma crítica ao presente, garantindo a todos que não estão mais presentes o direito a memória, uma memória que os leve em conta enquanto sujeitos históricos. Somente assim os mortos, e os vivos também, estarão democraticamente seguros.