Em uma releitura original do ascetismo cristão, o filósofo alemão Peter Sloterdijk admite não se sentir seguro sobre a explicação nietzschiana de sua gênese. Enquanto Nietzsche interpretou o ascetismo cristão como nascido de uma revolta de escravos ressentidos, Sloterdijk atribui a sua gênese a uma reavaliação dos valores diante da ascensão de uma elite de poder sem “virtu” que se calcificava na antiga Europa. Uma revolta contra as “elites” que se degeneravam no conformismo da posição aristocrática de apenas reproduzir dinastias sem “brilho”.
Castas dominantes degeneradas que esqueceram sua missão de serem “elites”, isto é, de serem os “melhores” humanos. Foi contra essa degeneração das elites que judeus dominados se “rebelaram” com o seu ascetismo moral, um novo regime de produção de elites fundado em exercícios de ascetismo. Assim, o ascetismo cristão seria a tentativa de releitura monástica e eclesiástica do ascetismo “pagão” da antiguidade clássica, motivado pela reação meritocrática contra uma “elite” degenerada que não se comportava como elite e que “não reconhecia nenhuma disciplina excerto a arte da dominação”.
Assim como aquela velha elite aristocrática e parasitária que gozava com o poder patrimonial sem esforço e sem mérito despertou a ira moral dos inconformados, a nova elite política e econômica potiguar parece certa da aceitação conformista dos populares diante das suas exibições públicas de promiscuidade entre o público e o privado.
À medida que são excluídos dos espaços mais estratégicos de comércio no centro de Natal, os trabalhadores populares que investiram no próprio negócio vão descobrindo que a expressão “empreendedorismo individual” não é tão democrática e universal quanto defendem seus ideólogos. A expulsão do comércio de camelô não é somente a prática de higienização social no bairro do Alecrim, mas também a saída violenta de práticas de “empreendedorismo” mestiço e negro protagonizadas por comerciantes das classes populares; e sua substituição pelo empreendedorismo “branco” das classes médias e altas que desejam acomodar suas futuras lojas comerciais, no futuro shopping a ser construído no bairro do Alecrim. De modo sorrateiro, agentes do Estado fazem o trabalho sujo das elites econômicas locais.
Natal, por sua vez, tem seu espaço urbano rodeado de Shoppings, bolhas ascéticas de consumo e Panóptico das classes médias e populares. Nessa “Elysion” do comércio, as camadas populares não podem transcender a mera condição de consumidores anônimos ou empregados das centenas de lojas administradas por proprietários de classe média. Assim como a feira do Alecrim é parte significativa da minha história biográfica, também imagino que são muitas as pessoas que diriam o mesmo sobre o comercio dos camelôs do Alecrim. Mais, para muitos trabalhadores/trabalhadoras e comerciantes, o camelô do Alecrim é a principal fonte de sentido de suas vidas. Por isso, sua remoção pode não somente resultar em prejuízos patrimoniais, mas também afetivos nas vidas daqueles vivem no seu cotidiano.
Uma elite econômica consumidora de botox, que enche os pulmões para defender a livre iniciativa e o empreendedorismo, e financia ações de intervenção estatal e evacuação de áreas públicas para satisfazer seus interesses monopolistas pode despertar sentimentos populares de desconfiança sobre a autenticidade de seus compromissos com aqueles ideais de livre concorrência. Amarga ironia que sejam os “sacerdotes” do liberalismo (grandes empresários locais) os mesmos a patrocinarem a tratorada estatal contra pequenos empreendimentos no comércio do Alecrim.
E o que dizer sobre a nova safra de políticos locais que se dizem “liberais” na economia, mas “conservadores” nos valores? Artificio de retórica que serve como espuma para se eximir da responsabilidade política e ideológica nos efeitos corrosivos da reforma do Alecrim para as mais de 300 famílias que vivem do comércio do Camelô. Quem tem o mínimo de juízo sabe muito bem que os danos materiais também reverberam na estrutura familiar, contribuindo para desestruturação das famílias que vivem sofridamente do seu empreendimento econômico.Repito, aproximadamente 300 comerciantes, pais e mães de famílias que encontram no seu comércio a principal “liga moral” de sua comunidade familiar de afetos compartilhados (para quem tem dúvidas, basta verificar o quão comum é encontrar pequenos comércios no Alecrim administrados por todos os membros de uma mesma família).
Contudo, mordidos pela mosca azul do liberalismo, os pequenos comerciantes e trabalhadores de baixa renda recém-convertidos ao credo liberal podem começar a achar que suas elites econômicas não são dignas de serem chamadas de “elites”. Sobretudo, suas “elites meritocráticas”. Se isso ocorrer, não causará espanto se em um belo dia de verão, as “elites” dormirem, tendo pesadelos com histórias de jacobinos, e acordarem com uma legião de cruzados em suas portas. Cruzados e cruzadas das camadas populares que no passado acreditaram realmente no sonho do Self-made man e que agora resolveram cobrar as promessas não compridas da meritocracia liberal. Acreditando estarem diante de um remake das revoltas bolcheviques do passado, restarão aos empresários acusarem seus desafetos de promoverem a “anarquia social”, quando na verdade, o que se ocorre é uma revolta moral e moralmente motivada pela exigência normativa de se fazer cumprir as promessas do liberalismo e de sua ficção socialmente fundada de não interferência estatal na vida econômica. Depois disso, melhor faz o empresariado potiguar deixar de lado sua camisinha liberal e assumir logo sua dependência dinástica da mão direita paternalista (visível) do Estado local.