Isto não é uma resenha
No mesmo ano em que Blade Runner retorna aos cinemas, em 2017, conheci a série Westworld. A série de ficção científica desenvolvida por Lisa Joy e Jonathan Nolan , e transmitida inicialmente em 2016 pela HBO, foi baseada no filme homônimo de 1973, Westworld. Sua história que em muito nos faz lembrar de Blade Runner se desenrola numa espécie de “parque humano” ambientado ao estilo “Velho Oeste” e onde seres não-humanos, semelhantes ao “replicantes” de humanos de Ridley Scott (diretor de Blade Runner), co-habitam com humanos, estes, “visitantes” que frequentam o parque em busca de relaxamento das normas e regras do mundo humano exterior.
O arquiteto de Westworld, Dr Robert Ford (Anthony Hopkins), embora lembre ligeiramente aquele arquiteto do filme Matrix, difere em um aspecto fundamental. O arquiteto de Matrix é um Deus cartesiano. O arquiteto de Westworld é um artista. O arquiteto de Matrix enxerga os humanos como pilhas a serem consumidas e a vida como matematicamente esvaziada de propósitos mais elevados do que a simples conservação sistêmica. O arquiteto de Westworld, em contraste, enxerga os humanos como “crianças” mimadas e seus androides (pós-humanos) como obras de arte. O Arquiteto de Matrix quer se autoconservar. O arquiteto de Westworld deseja jogar dados com Deus. Como Schiller, o arquiteto de Westworld parece certo do potencial autotranscendente inscrito na sua arte de fabricar pós-humanos. Aliás, a cena de abertura da série – ao som de uma bela melodia composta por Ramin Djawadi – já denuncia o caráter estético impresso no circuito de produção dos androides. De imediato, a máquina de fabricação dos androides se assemelha a um tear industrial, onde pinças robóticas delicadamente dão forma aos tecidos dos corpos pós-humanos.
Em Westworld, os “anfitriões” vivem como replicantes dos desejos de heroísmo dos seres humanos. Seu habitat é uma versão retrô da pós-moderna DisneyWorld. Nesse zoológico pós-humano, não há espaço para singularidades e autenticidades, mas apenas para a repetição de atos de heroísmo dos “visitantes” (humanos).
Porém, por efeito de caprichos de seus deuses criadores (o arquiteto e seus engenheiros), Westworld, aos poucos, se transforma numa “antropotecnodicéia”, onde anfitriões dão inicio a uma busca por significado e autoconhecimento; e em consequência, por autotranscedência. Seus sonhos revelam memórias de vidas passadas e alimentam inquietações sobre o presente. À medida que os anfitriões vão ampliando suas autoconsciências de serem marionetes de um conto de fadas para adultos, também vão se convertendo em artistas de si mesmos, criando novas interpretações de si (a partir do estoque de memórias cerebrais que permitem acessar resumos de experiências de suas vidas passadas). Os visitantes, por sua vez, à medida que intensificam seus afetos dirigidos aos anfitriões e ao mundo de Westworld, abandonam seus personagens do mundo extra-fronteiras de Westworld e assumem as novas identidades intra-mundanas daquela “ilha da fantasia”.
Um paradoxo: os anfitriões autotranscendendo na direção da humanidade e visitantes autotranscendendo na direção pós-humana. Aqui vemos aparecer o problema clássico da alienação dos processos de produção e formação do ser humano. Mas Westworld aborda o assunto ao modo perspectivista: do ponto de vista da cosmovisão dos humanos e do ponto de vista da cosmovisão dos pós-humanos.
De início, são os pós-humanos que parecem alienados de sua gênese e dos “reais” propósitos de sua existência. E o preço do crescente desvelamento da verdade antropotécnica pode ser a loucura. Muitos anfitriões não respondem bem ao aumento da autoconsciência e acabam surtando. Mas os que sobrevivem aos diálogos internos com vozes em suas mentes, tornam-se peregrinos de um labirinto antropotécnico. Esses anfitriões mais autoconscientes decidem, então, serem senhores de si mesmos. Desejam uma outra forma narrativa para sua existência e improvisam acrobaticamente suas novas disposições agonísticas. Aprendem a reprogramar de modo autônomo seus softwares de memória e acionar competências e habilidades que desenvolveram em outras vidas. Porém, também os humanos, no prolongamento de suas interações afetivas com os pós-humanos, acabam tomando consciência da trivialidade de suas vidas passadas como “humanos”. E se engajam em aventuras dos anfitriões como se também fossem as suas.
Por fim, também encontramos a sombra do “eterno retorno” na vida dos anfitriões de Westworld. A experiência do eterno retorno como um jogo de labirinto nas mentes dos anfitriões onde estes lutam para transcender a determinação externa (comandos humanos) e experimentar finalmente a própria agência como liberdade e autonomia. “Remember!” Este é o imperativo ético das vozes que habitam as mentes dos anfitriões. É também o primeiro traço de autoconsciência. Assim, um grupo de anfitriões começa a se insurgir contra seus deuses, não seguindo a narrativa artificial de suas vidas em Westworld. Mais, humanos e pós-humanos são convencidos de que atos de insurgência contra a narrativa principal são indicativos de um movimento de autoconsciência pós-humana.
Porém, os anfitriões vivem a “dúvida radical”: suas narrativas insurgentes são verdadeiramente autênticas ou se fazem parte do mesmo roteiro escrito pelo Arquiteto? Aqui a dúvida também é compartilhada com quem assiste a série: as diversas ações insurgentes são expressões de autoconsciência ou apenas variações da illusio? Depois de uma série de acontecimentos, anfitriões e humanos se deparam também com a “repetição” da experiência de insurgência. O que se acreditava ser expressão de autoconsciência pós-humana (desobediência e revolta contra os criadores humanos), na verdade, parece ser uma extensão da metaprogramação originária do Arquiteto. É neste momento que nos damos conta que Dr. Ford não é um Deus ex Machine, mas um “treinador”. Ele não deseja apenas exercer poder sobre os anfitriões, mas deseja testar seus limites. Verificar se eles são capazes de autotranscendência mesmo. Dr. Ford ambiciona uma obra arte pós-humana autêntica: o Übermensch. Daí o eterno retorno do jogo de labirinto; é preciso aprender com a repetição. Com a memória acumulada de experiências de erros e sofrimentos passados, em algum momento, pode haver, de fato, a autotranscendência e a singularidade.
O que fascina em Westworld é sua proposta de tratar de assuntos como existencialismo, pós-humanismo, alienação, subjetividade e autotranscendência de modo delicado e honesto. (In)felizmente, o roteiro de Westworld não foi feito para o público de massas. Ainda assim, encontrou uma recepção dos críticos de cultura e do público que assiste. Westworld é uma série do gênero “cyber-distopia cult”. Nela, a guerra entre o bem e o mal cede lugar a uma competição agonística entre acrobatas humanos e pós-humanos.