Diante das recentes manifestações autoritárias e conservadoras no Brasil, se faz necessário refletir e contextualizar tais manifestações. É preciso localizar historicamente os elementos que sustentam os discursos de ódio e intolerância vociferados por uma parcela da sociedade brasileira.
Nos causa espanto ver um jovem de classe média, nas redes sociais, propagando um discurso pouco racional, mas com teor autoritário e conservador, que discrimina pobres, pede a volta da ditadura militar, humilha homossexuais. Mas impossível não associarmos tal discurso à sociedade brasileira e o seu subsolo fértil e fomentador do pensamento autoritário: os séculos de escravidão e violentas ditaduras durante o século XX.
O pensamento autoritário sempre esteve presente na sociedade brasileira. Porém, neste momento social e político repleto de particularidades, ele ganha teores de atualização do discurso conservador como reação às tentativas de inclusão de minorias em lugares sociais até então inconcebíveis. Essa inclusão vai de encontro com o projeto social que foi estabelecido desde os tempos coloniais: um país para brancos, cristãos e heterossexuais. Tal projeto sempre esteve cristalizado e enraizado em nossa cultura e formação, e as tentativas de desconstrução do mesmo sempre causaram sérios impactos e reações fortemente autoritárias.
Com base nesse projeto de nação verdades foram sendo construídas (repetição de estereótipos imagéticos e discursivos num dado momento histórico e político) sobre os lugares dos sujeitos sociais. Lugares esses que foram se cristalizando, se enraizando e sendo naturalizados, fazendo parte da cultura/tradição o lugar dos poderosos e o lugar daqueles que devem se submeter aos mesmos.
O sistema educacional teve importância fundamental na difusão do mutismo, da subserviência e da naturalização das desigualdades. Foi necessária a circulação de valores e do discurso de nação democrática e igualitária para camuflar as práticas de relações autoritárias e excludentes que sempre marcaram a sociedade brasileira.
A principal eficácia do sistema educacional tradicional foi exatamente a identificação dos oprimidos com os opressores. Os oprimidos desejam ser opressores. Os pobres identificam-se com a atmosfera burguesa e desejam para si um lugar no grupo minoritário e privilegiado economicamente.
A enraizada concentração de terra, poder e saber sempre fomentou violentas desigualdades, mas suas reverberações foram naturalizadas e nunca apontadas como causadoras de problema algum. Percebe-se, em dias atuais, imenso espanto quando essa concentração histórica é apontada como uma das causas de crônicas mazelas sociais do Brasil.
Com a difusão das redes sociais, os discursos de teor autoritário e conservador (sem constrangimentos de seus autores), carregam marcas sociais de seus lugares. Importante sempre relacionar o lugar social e subjetivo da construção de cada discurso quando brancos de classe média criticam cotas raciais ou mencionam a luta por direitos das minorias como aquisição de privilégios.
A tensa relação desses lugares sociais foi intensificada nesses últimos anos com a presença de pobres e negros nas universidades, aeroportos e shoppings. As reações de setores conservadores foram violentas. Mas, a cena “tradicional” e “natural” de ausência de negros e pobres nas turmas de Medicina ou Arquitetura nas universidades públicas, por exemplo, nunca causou indignação por parte dos mesmos, porque em seu imaginário, no projeto de nação, o lugar social de negros e pobres é o de perpétuos serviçais.
As redes sociais não trouxeram nenhuma novidade no teor do discurso autoritário que sempre existiu, apenas serviram como ferramenta para descortinar sem constrangimentos os posicionamentos corriqueiros do “brasileiro comum” que se caracteriza pela precariedade intelectual e analfabetismo político. Os discursos de ódio representam muito mais afetações emocionais do que qualquer tipo de manifestação racional sobre algum problema social do país. Por isso não há constrangimento algum naquele com vocifera abertamente nas redes sociais um discurso intolerante (racista, elitista, homofóbico etc.).
É bastante comum percebemos que esses discursos são reveladores da imensa dificuldade de seus autores de lidar com a diferença e com o temor de perder privilégios de seus lugares sociais. E por conta do analfabetismo político, não conseguem reconhecer a historicidade de seus discursos e as reais motivações que fomentam a construção de seus discursos de ódio e intolerância.
Uma aberração que é consequência do contexto político recente é o que chamam de Escola sem partido, que visa desqualificar o debate sobre as desigualdades e violência de gênero (apontam equivocadamente interesses partidários na iniciativa de debate). Aponta o debate, o pensar, o fomentar a diferença como doutrinação. Sugere uma educação conteudista, neutra e sem posicionamento crítico, como se fosse possível haver neutralidade nas ações humanas.
O olhar muito comum nesses discursos é de que existem apenas indivíduos sem subjetividade que não se relacionam com a historicidade e com o processo econômico da sociedade da qual fazem parte. Os indivíduos são vistos apenas como bons e maus; preguiçosos ou merecedores de mérito por seus esforços. O pobre é pobre simplesmente porque não quis estudar, e o rico é merecedor da riqueza por conta de seu empenho nos trabalho e nos estudos. Não conseguem reconhecer historicidade e uma rede complexa de relações que sustentam os pilares políticos e econômicos das sociedades.
O agravamento da crise social, moral e ética tem fomentado os discursos de ódio e a crença em soluções violentas para as mazelas do país. Por exemplo, são cada vez mais comuns os discursos favoráveis a uma ditadura militar ou o incentivo a uma sociedade cada vez mais armada.
E nesse contexto surgem os que vão se aproveitar da ignorância e do desespero do “brasileiro comum”, ávido por alguma solução para o caos social. Politiqueiros e charlatões que sugerem soluções rápidas e “simples” para mazelas sociais enraizadas. Seu discurso é precário e desprovido de qualquer tipo de contextualização ou historicidade, causando encantamento naqueles que tem com base a revolta irracional e a desinformação.
O deputado Jair Bolsonaro é o principal representante desses discursos. Antes, a fúria autoritária tinha de ser depositada nos politiqueiros do PSDB (ou similares). Agora existe alguém de “relevância nacional” que formula e representa o pensamento precário e intolerante sobre as mazelas do país.
Os discursos desse deputado encantam o “brasileiro comum”, pois revelam o que o mesmo gosta de ouvir corriqueiramente. Nestes discursos, os valores democráticos e civilizatórios são agredidos e desprezados o tempo todo, diante de plateias sem capacidade de questionar a essência dos mesmos. Sua reverência à prática de tortura, elogio a ditadores, racismo e homofobia tem causado encantamento nas fileiras de adesão irracional e imediatista.
Basta uma simples análise de alguns discursos para se perceber que existe pouco teor racional e exagerada exploração emocional nas abordagens feitas pelo deputado Jair Bolsonaro. Fácil perceber também uma rejeição à problematização e à contextualização dos temas sociais que comenta, chegando ao ponto de desqualificar os saberes acadêmicos e a história oficial, tidos como “coisas de intelectuais comunistas”.
Apenas a educação cidadã será capaz de neutralizar os discursos autoritários e fascistas que tanto têm encantado e causado deleite nas parcelas conservadoras de nosso país, que querem ver as armas ocupando o lugar da educação. É necessário insistir no estímulo à racionalidade, ao discernimento e na defesa irrestrita dos valores democráticos e civilizatórios.