O que tem a ver o cineasta Woody Allen com o estrondoso sucesso do ritmo reggaeton com o hit “Despacito”, nesse momento tocando em nove em cada dez festas juninas brasileiras? Muito, desde a reação de Woody diante de uma banda de punk rock no filme “Hanna e suas Irmãs” (1986) até o niilista aforismo do diretor de que a vida poderia ser resumida a três eventos: nascimento, sexo e morte. É recorrente como as músicas de sucesso sempre giram em torno desses três temas. No caso de “Despacito”, um longo monólogo masculino “gangsta” de ostentação, sedução e poder. Um “case” exemplar dos mecanismo circulares e tautológicos da indústria do entretenimento fazer sucesso com um produto que se promove como tal antes mesmo de ser distribuído e executado. E que, como sempre, conta com a dinâmica da chamada “espiral do silêncio”.
No filme Hannah e suas Irmãs (1986) Mickey (Woody Allen) tem um encontro com a problemática Holly (Dianne Wiest). Saem para jantar e terminam a noite em uma casa noturna underground. Sentam-se em uma mesa, diante do palco no qual uma barulhenta e agressiva banda de punk rock fazia um show.
Mickey faz caretas e reclama: “vou ficar surdo, não consigo ouvir nada. Estão destruindo os meus ouvidos!”.
“Mas eles são geniais… Não sente a energia? O lugar está repleto de vibrações positivas!”, respondeu Holly.
“Depois do show vão fazer reféns…”, disse aterrorizado Mickey diante de uma banda que gritava e fazia gestos agressivos para a plateia.
Olhando para os gestos e requebros, caras de mau e olhares entre o malicioso e o perverso da dupla formada pelo porto-riquenho Luis Fonsi e o rapper Daddy Yanke cantando em um vídeo-clip o hit Despacito, poderíamos perguntar no melhor estilo Woody Allen: “quanto eles vão cobrar por um programa no final do clip?…”.
Pode parecer politicamente incorreto (e é!), mas a conotação visual “cafetão cafajeste” da dupla Fonsi-Yanke no vídeo-clip do sucesso com inúmeras mulheres se insinuando ao redor, enquanto outros caras não menos suspeitos tentam pegar para si suas próprias mulheres, diz muito sobre a natureza do hit Despacito que agora martela impiedosamente nas mídias e ecoa em nove de cada dez festas juninas brasileiras.
Não obstante a letra quilométrica da música (uma coisa rara em hits populares) e sem a profusão de vogais no refrão como nos hits brasileiros como fosse uma linguagem infantil tatibitate – clique aqui) ainda assim Despacito é mais do mesmo: enquanto “Não Se Reprima” dos Menudos nos anos 1980 exortava o público a deixar de se controlar e se esconder para gritar, dançar e fazer o que manda o coração, Despacito fala a mesma coisa… só que recomenda se desreprimir mais… “devagarzinho”.
Nascimento, sexo e morte
Mas não só por isso é mais do mesmo. Despacito é um hit exemplar para estudiosos em mitologias midiáticas porque explicita uma estrutura recorrente na construção da música popular de sucesso – a estrutura musical estereotipada e a dinâmica de divulgação do “sucesso” de um produto que já nasce como tal, antes mesmo de ser ouvida pelo público – o fenômeno da chamada “espiral do silêncio”.
Voltando novamente para Woody Allen, o cínico cineasta dizia que a vida poderia ser reduzida a três episódios mais significativos: o nascimento, sexo e a morte.
Se adaptarmos essa visão de mundo Alleniana a uma, por assim dizer, metodologia para analisar a música popular de sucesso, teremos uma surpresa: as letras ou argumentos desses produtos musicais industriais também giram sempre em torno da trinca nascimento/sexo/morte. São grandes gêneros que depois se subdividem em subgêneros.
A saber: Nascimento – infância, pureza, inocência, brincadeira, jogo, amor romântico, saudades, família; Sexo – amor erótico, compulsão, vício, malícia, sedução, perversão, objetificação, fetiche; Morte – violência, agressão, tristeza, melancolia, perda, separação, luto.
Em geral a música de sucesso é estereotipada: sem ambiguidades, a letra sempre explora unicamente um gênero, sem querer aventurar-se pelos demais para a mensagem ficar clara e óbvia.
Signos do “reggaeton”
Mas antes de qualquer análise semiótico-estrutural de Despacito temos que entender o contexto musical e cultural da música.
Como todo hit, é sempre uma versão mais “melhorada”, com arestas e ruídos limados e diluídos para funcionar bem em qualquer mercado, de algum gênero musical ou tendência cultural que era anteriormente rejeitado. A música combina pop urbano latino com o gênero chamado “reggaeton” – estilo musical com raízes latinas e caribenhas, influenciado pelo hip hop, salsa e música eletrônica.
Geralmente cantado em “spanglish” (uma mistura de inglês e castelhano) suas músicas têm forte apelo sexual com temas que fazem parte da cultura gangsta – drogas, crime, festas e ostentação.
O ritmo reggaeton sempre foi polêmico. Por exemplo, em Porto Rico o governo ameaçou proibir manifestações desse gênero por supostamente incentivar a prostituição e violência.
Preconceito e racismo à parte (da qual os bailes funks também são vítimas no Brasil), o “case” Despacito lembra o divisor de águas da apresentação de um show funk do DJ Marlboro no terraço da loja de artigos de luxo Villa Daslu em 2011 – edição especial do show Sensual Easy para jovens classe média alta se sentirem como “cachorras” num baile funk em um morro carioca.
Monólogo machista
Assim como o funk foi “limado” e “melhorado” (ou “gourmetizado”) para baladas de jovens novos ricos, da mesma forma Despacito libera-se dos ruídos e arestas sócio-culturais. E transforma tudo em signos do gênero alleniano “Sexo” – objetificação feminina, fetichização, malícia e perversão.
(a) A letra é um longo monólogo de um protagonista “fodão” (corroborado com o clip com caras e bocas entre malícia, perversão e demonstrações de força e poder – correntes grossas no pescoço, óculos ray-ban e cara de “acento circunflexo” ao melhor estilo “Stallone Cobra”, mulheres agarradas por homens, carrões masculinos com mulheres sentadas nos capôs etc.). Na letra temos apenas a sedução e as impressões sob o ponto de vista masculino. O que será que estaria pensando o objeto passivo da sedução?
(b) Como um impagável monólogo machista, o vídeo-clip de Despacito idealiza a mulher “amada”, cujo protagonista quer “despi-la com beijos” e transformar seu corpo num “manuscrito”, de forma platônica e exibicionista: ela está sempre sozinha, girando, dançando e provocando. Enquanto o restante das mulheres parecem se entregar a seus homens. Ela desliza pelas ruas e bares como uma diva, enquanto as outras são “promíscuas”. Só no final se entrega para o seu único homem, o “fodão” Fonsi. O mundo feminino poderia ser dividido entre mulheres “decentes” e “devassas”?