Belchior foi um verdadeiro objeto voador não identificado na MPB. Por décadas a mídia corporativa tentou enquadrá-lo em alguma categoria: “rapaz romântico”, “brega”, “figura de voz fanhosa e bigodão” etc. E nos últimos anos, procurou encaixá-lo na narrativa “desaparecido/aparecido” e, por fim, na sua morte, transformá-lo no estereótipo do “maluco beleza”. Para quê? Para enquadrá-lo na derradeira narrativa do modelo negativo moralizante: o “maluco beleza” irresponsável que não conseguiu dar a “volta por cima” numa suposta carreira que descia ladeira abaixo. Belchior sabia que a mídia fazia tábula rasa da sua obra e, por isso, de forma autoconsciente virou um OVNI da MPB. A forma como a grande mídia “reciclou” a morte de um ser inclassificável confirma uma tese do pensador Theodor Adorno sobre a função do entretenimento na Indústria Cultural: apertar ainda mais os arreios que nos prendem à disciplina do mundo do trabalho.
Espera-se de um cantor brasileiro de sucesso que ele emplaque um ou dois hits, encha a burra de dinheiro e, se não conseguir fazer mais do mesmo, que ocupe espaço na mídia em programas de auditório, talk shows e até telenovelas. E se ainda arriscar a dar opiniões políticas e seguir a biruta (aquela de aeroporto) indicada pela mídia, melhor ainda.
Se os hits acabarem e o cantor ousar se reinventar, virará “cult”. Abandonará os canais da TV aberta e, talvez, arrisque presenças em canais por assinatura ou “pocket shows”.
Mas há uma terceiro tipo de artistas, espécie de OVNI (objetos voador não identificado) na música popular brasileira, inclassificáveis, resistentes a categorizações da grande mídia e crítica especializada. Cantores e compositores que não chegaram a participar de nenhum movimento cultural musical como bossa nova, tropicalismo, vanguardas etc.
Suas composições foram até regravadas por artistas das categorias acima mas, ainda sim, são resistentes a classificações: Walter Franco, Tom Zé, Raul Seixas, Itamar Assumpção entre outros.
Belchior foi outro OVNI na MPB. Ao longo das décadas, a mídia corporativa tentou enquadrá-lo de alguma forma: quando alcançou repercussão com o álbum Alucinação (1976) com hits como “Apenas um rapaz latino-americano”, “Velha roupa colorida” e “Como nossos pais” (essas regravadas por Elis Regina), Belchior foi categorizado como “um rapaz romântico”. Quando, na verdade, o cantor vinha de uma trajetória de shows em escolas, teatros, hospitais e penitenciárias.
Com a sua independência em 1983, fundando sua própria produtora e gravadora (a Paraíso Discos), a grande mídia iniciou um movimento de rotulá-lo como um artista brega, de voz fanha e um grande bigodão.
“Por onde andará Belchior?”
E mais tarde, com direito a reportagem “investigativa” do Fantástico, a Globo lança a pergunta: “por onde andará Belchior?”. Criou-se a narrativa do “desaparecimento” para depois o artista ser “encontrado” no Uruguai e entrevistado como um esforço de reportagem da emissora. O novo script que se criava era que a vida de Belchior estava descendo ladeira abaixo e vivia no ostracismo.
E agora, na sua morte, a mídia constrói o estereótipo clássico do “maluco beleza”, repetindo ad infinitum um vídeo-clip da música “Na hora do almoço” apresentado no programa Fantástico nos anos 1970. Um vídeo de estética surreal, em uma praia, barba, cabelos desgrenhados, braços abertos e descalço. Visto daqui, do século XXI, e sem conhecimento do contexto da época, diríamos que aquela figura foi alguma coisa entre as “esquisitices” de Raul Seixas e as breguices de Odair José.
Um incômodo OVNI
Por que para a indústria fonográfica e mídia corporativa Belchior sempre foi um incômodo OVNI? Por que essa necessidade ao longo dos anos de tentar enquadrá-lo em alguma coisa, para no final terminar como o “maluco beleza” vítima de si mesmo?
Claro que em primeiro lugar a indústria do entretenimento sente um profundo incômodo quando um artista é inclassificável e, mesmo assim, ganha certa notoriedade. Mas há algo mais, muito além da dificuldade em fazer taxonomia de espécimes culturais.
Talvez a primeira pista de uma explicação esteja na fala do escritor Xico Sá no programa da GNT Papo de Segunda, sobre o tema “Volta por Cima”. Quando todos discutiam a importância moral de termos força para dar “volta por cima” na vida, entrou na roda de discussão o “ostracismo” e morte de Belchior. Xico Sá foi direto: “ele sempre foi anárquico. Resolveu tocar um foda-se e largou tudo”. Para Xico, Belchior estava além do script moralizante da “volta por cima”, como alguém que supostamente não teve coragem necessária para enfrentar os problemas da vida.
No final, ao construir do estereótipo de maluco beleza e imputá-lo a Belchior como uma espécie de síntese conclusiva para definitivamente enquadrar o OVNI, é como se os ideólogos da mídia corporativa tentassem, como sempre, dar uma lição de moral e disciplina para as massas telespectadoras: “vejam o que acontece no final com um maluco beleza irresponsável, que não paga suas contas e não assume filhos!”.
Lição sincrônica e oportuna numa época de crise atual de inadimplência, desemprego e insatisfação crescentes. É necessário dar uma lição para as massas para que vejam no quê dá querer quebrar a ordem.
Belchior foi a própria confirmação das teses de Theodor Adorno sobre a função do entretenimento e do tempo livre na Indústria Cultural: a submissão do tempo ocioso e de lazer aos mesmos princípios que regem o mundo da disciplina do trabalho – sob a superfície moralizadora, apertar ainda mais os arreios que nos ajustam à ordem de uma vida “responsável”.
Belchior e a intertextualidade
O problema era que Belchior, além de ser um OVNI inclassificável, ainda disparava contra os movimentos enquadrados pela indústria do entretenimento. O compositor abusava do recurso linguístico da intertextualidade, fazendo intervenções críticas às citações de músicas de “medalhões”. Como, por exemplo, em “Apenas um rapaz latino-americano” cita trecho da canção “Divino Maravilhoso” de Gilberto Gil e Caetano Veloso que diz “Tudo é divino! Tudo é maravilhoso”.