Por Renato K. Silva, doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.
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Na primeira partida da semifinal do Campeonato Paulista entre São Paulo e Corinthians, no Morumbi, um lance foi mais repercutido do que a vitória do time alvinegro por dois a zero: o fair play (jogo limpo) praticado pelo zagueiro do tricolor paulista Rodrigo Caio. Assim foi o lance: Jô, atacante do Corinthians, tinha recebido cartão amarelo do árbitro Luiz Flávio de Oliveira por uma suposta falta (pisão) cometida contra o goleiro do São Paulo, Renan Ribeiro, mas quem de fato deu o pisão no goleiro foi o próprio Rodrigo Caio numa espécie de “fogo amigo”. De chofre, Rodrigo Caio acusou ao juiz que fora ele, Rodrigo, que involuntariamente machucou o companheiro de equipe. Luiz Flávio imediatamente retirou o cartão amarelo que havia aplicado em Jô e elogiou o gesto do zagueiro são paulino.
De domingo pra cá a resenha futebolística brasileira, sobretudo a Globo e sua plêiade de mídias, vem alardeando o gesto de Rodrigo Caio, ora repercutindo as opiniões favoráveis à ação do jogador ora criticando o gesto numa espécie de tribunal midiaticamente espetacularizado com o único intuito de preencher, com fumaças de seriedade, a tacanha programação da nossa crônica esportiva.
Desde Tadeu Schimdt que, foi convertido numa espécie de Moisés do bom-mocismo do futebol brasileiro dizendo o que “pode” e o que “não pode” no bloco dos gols do Fantástico, a Galvão Bueno durante a transmissão da Champions League nesta terça, que a Globo vem buscando arrebanhar a simpatia dos telespectadores ao endossar positivamente a atitude de Rodrigo Caio.
O oportunismo da emissora chega às raias do ridículo quando, numa forçosa metonímia (a parte pelo todo), busca anexar o gesto do zagueiro tricolor à suposta “virada ética” que a Lava Jato vem empreendendo no país. Além de limitar o debate sobre a ética do fair play a emissora vem, demagogicamente, tentando catequizar-nos que ela sempre foi a favor do “jogo limpo” e contra a “malandragem” (leia-se antítese da ética) do futebol brasileiro e contra a corrupção no seio de nossa sociedade. Sabemos que isso não condiz com a realidade tanto na esfera da política, vide os casos de Boni contra Lula e também o apoio das organizações aos militares de 1964, quanto na esfera do futebol.
Na criação ideológica do futebol brasileiro como “arte” a “malandragem” dos nossos jogadores, supostamente refratários à ética do elitista esporte bretão, é um dos alicerces que sustenta a mística do nosso futebol. Se formos na história constataremos que as organizações Globo foi e é uma peça central na construção desse ideário “artístico” fruto da ginga, da malícia, da molecagem, da alegria e da irreverência gratuita dos nossos jogadores sobretudo os meios-campistas e atacantes, segundo propagam. Alguns dos responsáveis por criar essa imagem do jogador brasileiro como “artista” passaram pelas mídias da Globo seja nas rádios, jornais, revistas ou na tevê, dentre estes: Mário Filho, Nelson Rodrigues, Armando Nogueira e João Saldanha, os dois últimos perseguidos posteriormente pela emissora por questões políticas.
O grupo acima citado mais alguns outros, como, por exemplo: Gilberto Freyre e o poeta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini criaram, também, respectivamente, as categorias de futebol “dionisíaco” e “poesia” para retratar a maneira de como jogamos o esporte bretão em detrimento do jogo “apolíneo” e “prosaico” praticado pelos europeus. Estes dois foram igualmente responsáveis por fomentar a perigosa relação: a alta eficiência técnica dos nossos jogadores é associada à “malandragem”, ou ao elemento “plástico” e “lúdico” oriundo de nossa formação cultural.
Cansamos de assistir pela Globo o delirante e ufanista Galvão Bueno tentando animar a sua plateia, sobretudo nos jogos da Seleção Brasileira, com jargões do tipo: “Isso é futebol brasileiro, meu amigo…” quando a Seleção está goleando algum adversário; “os alemães jogam uma coisa parecida com o futebol…” evidentemente antes dos 7×1 na Copa de 2014, para designar que nós detemos o monopólio do que é entendido por “futebol”, seja lá o que Galvão entende por isso. Em relação aos alemães, é interessante observarmos que após a fatídica derrota de 2014 toda a crônica esportiva brasileira mirou seu binóculos invertido (visão estreita) para o exemplo alemão. Bastou Tite emplacar nove vitórias consecutivas com a canarinha para os teutônicos saírem do horizonte tal qual a falácia das “pedaladas fiscais”. Aquela galvanização toda para que o nosso futebol espelhasse o exemplo germânico em nenhum momento fez alusão ao principal empreendimento coletivo dos alemães na História.
Citarei dois exemplos de como a Globo está sendo oportunista com o episódio de Rodrigo Caio. O primeiro deles é uma reportagem de Régis Rösing, repórter esportivo da Globo, sobre o ex-lateral esquerdo da Seleção Brasileira Nilton Santos que, durante a Copa do Mundo de 1962, no Chile, na vitória do Brasil contra a Espanha por dois a um, comete um pênalti mas em seguida dá dois passos para a frente e saí da grande área e ludibria o árbitro que só marca falta. O adjetivo que Régis Rösing usa para qualificar a ação de Niltons Santos é “esperto”.
O outro episódio em que a Globo desdenhou do fair play foi durante a final da Copa do Mundo de 1998, na França, vencida pelos donos da casa contra o Brasil por três a zero. Na ocasião Zidane caiu no gramado sentindo dores e Rivaldo joga a bola para fora para atendimento do francês. Galvão Bueno que transmitia a partida ao vivo comenta que “Tá na cara que o Zidane não tem nada”. Naquele momento parecia que Galvão além de narrador era médico. Sua opinião foi endossada pelos ex-jogadores Romário (na época cortado da equipe por motivos médicos) e Falcão que estavam comentando a partida na cabine, ou seja, trabalhando para a Globo.
Figura III Edmundo durante a final da Copa de 1998.
O oportunismo e a hipocrisia da Globo na questão de Rodrigo Caio só não são maiores do que a ignorância da empresa no tocante à prática do fair play no Brasil vis-à-vis o praticado na Europa. Na outra semifinal do mesmo Campeonato Paulista realizada entre Ponte Preta e Palmeiras, vencida pelo time de Campinas por três a zero, o lateral esquerdo Zé Roberto do Palmeiras, 42 anos e um exemplo de atleta dentro e fora de campo, protagonizou uma encenação que deixou todos surpresos mas que foi ofuscada pela atitude de Rodrigo Caio no mesmo domingo. Zé Roberto simulou uma cotovelada que não houve.
Vamos fazer agora um exercício sociológico, certamente se Zé Roberto tivesse jogando ainda no Bayern de Munique, por exemplo, ele não simularia esta cotovelada. Por quê? Simplesmente porque na Europa a comunidade futebolística não permite questões desta ordem devido a “densidade dinâmica” (Durkheim) oriunda da própria tradição do “jogo limpo” nascida na cultura do “gentleman” inglês de onde o futebol surgiu. A “densidade dinâmica” ensinada pelo sociólogo francês-judeu gera um sentimento de “coesão”, isto é, a solidariedade entre os envolvidos dão pouca margem para que alguém burle a regra, no caso, o fair play, que não faz parte das 17 regras do futebol estritamente, mas muitos apontam como a “18ª regra”.
A prática do “jogo limpo” na Europa não é uma estrutura rígida que faz os jogadores agirem assim o tempo todo e em qualquer lugar, pois não sem razão a maioria dos grandes atletas que lá atuam serem de outro continente e às vezes transgridem a norma do fair play atuando em outras praças, como, por exemplo, um jogador acima de qualquer suspeita no tocante à prática do “jogo limpo” se envolveu recentemente num episódio lamentável. Me refiro aqui a Lionel Messi que foi suspenso por quatro partidas depois de xingar um bandeirinha brasileiro após a derrota da Argentina contra o Chile válida pelas Eliminatórias da Copa da Rússia.
Portanto, a prática do “jogo limpo” é uma contingência cultural que não tem nada a ver com subdesenvolvimento econômico tampouco com a alta eficiência técnica associada à “malandragem” que os ideólogos do futebol brasileiro quiseram nos imputar e, neste caso específico, a Globo tem uma parcela significativa na reprodução da ideia de nosso “atraso cultural” no que diz respeito a não praticarmos o fair play com mais frequência.
Ao perpetuar a fulanização da ética no episódio de Rodrigo Caio a Globo faz um desserviço pois associa a ética à pessoas específicas em detrimento de uma concepção de cultura onde há baixa “densidade dinâmica”, ou seja, baixa coesão (solidariedade) entre os agentes envolvidos seja no futebol ou na política, como é o caso brasileiro em que a cultura do “gentleman” (ou “fellow”) não fez parte de nossa formação.
O culto à personalidade na prática de uma ação ética, como a Globo está fazendo no exemplo de Rodrigo Caio, não pode ser entendida como uma postura progressista porque a ética – assim como todos os valores morais que geram solidariedade –, precisa ser compreendida dentro de parâmetros culturais específicos. Do contrário, o culto à personalidade é pródigo em produzir figuras autocratas, como, por exemplo, estamos presenciando atualmente em nosso Judiciário.