Por Idaylton Garcia Cunha
Advogado especialista em Direito do Trabalho e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RN
A aprovação do Projeto de Lei nº 4.302/1998, sancionada e publicada como Lei nº 13.429/2017, que altera dispositivos da Lei nº 6.019/1974 (Lei do Trabalho Temporário), vem causando muita polêmica. Logo após a aprovação do Projeto de Lei, os veículos de comunicação anunciaram de forma categórica: Câmara dos Deputados aprova terceirização ampla e irrestrita no Brasil. Segundo foi divulgado, a aprovação do referido projeto de lei permitiria a extensão do fenômeno da terceirização de trabalho para as atividades-fim das empresas, precarizando de vez as relações de trabalho em nosso país.
Mas será que a Lei nº 13.429/2017 realmente autoriza a terceirização ampla e irrestrita no Brasil? Será que a redação da referida lei realmente prevê a possibilidade de terceirização das atividades-fim das empresas? São esses os questionamentos que os juristas que estudam o Direito do Trabalho estão procurando responder após a publicação da lei.
Sem a intenção de esgotar o tema ou de fazer qualquer análise jurídica aprofundada sobre a nova lei, pretendemos, neste pequeno artigo, esclarecer alguns conceitos jurídicos dos institutos tratados pela nova lei e demonstrar que a interpretação que vem prevalecendo entre os estudiosos do Direito do Trabalho é que a Lei nº 13.429/2017, na verdade, não autoriza a terceirização ampla e irrestrita no país. Porém, pretende-se também demonstrar que não há nada a se comemorar.
– DIFERENÇA ENTRE TRABALHO TEMPORÁRIO E TERCEIRIZAÇÃO
O primeiro ponto que merece destaque é que a Lei 13.429/2017 não traz qualquer alteração à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como equivocadamente se pode imaginar. A nova lei altera, na verdade, dispositivos da Lei nº 6.019/1974, mais conhecida como Lei do Trabalho Temporário.
Com as alterações promovidas pela nova lei, a Lei nº 6.019/1974, que sempre dispôs sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas, passou a dispor também sobre as relações de trabalho nas empresas de prestação de serviços a terceiros. Ou seja, agora a Lei nº 6.019/1974 dispõe sobre duas relações diferentes de trabalho: o trabalho temporário e a terceirização em geral.
Para melhor compreensão do tema, portanto, faz-se necessário saber o que é o trabalho temporário e em que ele difere da terceirização em geral.
É preciso deixar claro, inicialmente, que tanto no trabalho temporário quanto na terceirização em geral há uma relação triangular de trabalho: uma empresa tomadora dos serviços, uma empresa de trabalho temporário ou prestadora de serviços e o trabalhador.
Ambos os institutos são caracterizados pelo fato de que a força de trabalho do empregado é despendida em favor de terceiro estranho ao contrato de emprego. Por isso, parte da doutrina entende o trabalho temporário nada mais é do que uma espécie de terceirização, prevista em lei desde o ano de 1974. Adotamos, no entanto, o entendimento de que o trabalho temporário é mera intermediação de mão de obra, pois a empresa de trabalho temporário tem como função apenas fornecer empregados para o exercício de atividades na empresa tomadora de serviços, sem exercer o poder de comando (diretivo) no local da prestação de serviços.
Com efeito, a nova redação do art. 2º da Lei nº 6.019/1974 prevê que “trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física contratada por uma empresa de trabalho temporário que a coloca à disposição de uma empresa tomadora de serviços, para atender à necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços”. Além disso, o § 2º do mesmo artigo assim dispõe: “considera-se complementar a demanda de serviços que seja oriunda de fatores imprevisíveis ou, quando decorrente de fatores previsíveis, tenha natureza intermitente, periódica ou sazonal” (grifos nossos).
Da leitura dos enunciados normativos supracitados se conclui, claramente, que o regime de trabalho temporário não pode, em regra, ser utilizado para a terceirização de atividades inerentes ao cotidiano da atividade econômica da empresa tomadora de serviços, já que essas atividades não podem ser consideradas imprevisíveis e não têm natureza intermitente, periódica ou sazonal. A única exceção prevista na lei é o caso de necessidade de substituição transitória de pessoal permanente, que diz respeito a situações rotineiras de substituição de empregados (férias, licença-maternidade, licença-médica etc. – obs: a lei proíbe o trabalho temporário para substituir trabalhadores em greve).
Assim, uma fábrica, por exemplo, não pode contratar trabalhadores temporários para nenhuma atividade que faça parte de sua rotina diária, como as atividades de limpeza, vigilância, portaria, jardinagem etc., exceto nos casos de substituição transitória de pessoal, como nos casos das férias e das licenças previdenciárias.
Perceba-se, portanto, a primeira grande diferença entre o trabalho temporário e a terceirização geral: as atividades que fazem parte da rotina de trabalho de uma empresa não podem ser objetos de contrato de trabalho temporário (exceto para substituição transitória de pessoal). Na terceirização em geral, no entanto, isso é possível, desde que essa atividade não esteja no rol de atividades-fim da empresa. No exemplo citado acima, os serviços de limpeza, vigilância, portaria, jardinagem e todos os outros que não sejam considerados como típicos à linha de produção da fábrica poderão ser terceirizados.
É importante mencionar que a terceirização em geral, apesar de ser prática consolidada nas relações de trabalho do nosso país, jamais tinha sido regulamentada por lei, até a publicação da Lei nº 13.429/2017. Diante da omissão legislativa, coube ao Poder Judiciário, em sua atividade típica, criar parâmetros e limites a serem observados na terceirização.
É a Súmula nº 331, do Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, que traz a permissão para a terceirização apenas das atividades-meio da empresa tomadora dos serviços, desde que inexistam a pessoalidade e a subordinação direta entre a empresa tomadora e o trabalhador (item III da Súmula nº 331 do TST).
Aliás, a terceirização sempre se justificou, para seus defensores, por permitir que a empresa tomadora de serviços transfira suas atividades menos relevantes para terceiro, de modo que possa se dedicar de forma integral para sua atividade-fim, o que permitiria melhores resultados para a empresa. Esse foi um dos principais motivos que fez com que a terceirização da atividade-meio tenha sido aceita na jurisprudência.
De forma sintética, as diferenças mais relevantes entre trabalho temporário e terceirização são:
Trabalho temporário | Terceirização em geral |
Em regra, permite-se a terceirização apenas nas atividades que não fazem parte do cotidiano da empresa. A única exceção refere-se aos casos de substituição transitória de pessoal permanente (inclusive da atividade-fim da empresa). | Permite-se terceirizar, de forma permanente, atividades que fazem parte da rotina da empresa (excetos as chamadas atividades-fim). |
Apesar de vinculado juridicamente à empresa de trabalho temporário, o trabalhador temporário é submetido às ordens da empresa tomadora dos serviços. | O trabalhador terceirizado não está submetido às ordens da empresa tomadora de serviços. |
O trabalho temporário tem prazo limitado de 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias, totalizando 270 dias. | A terceirização em geral pode ser utilizada por tempo indeterminado. |
A empresa de trabalho temporário não precisar ser especializada para certo tipo de atividade. Na realidade, a empresa de trabalho temporária é uma mera intermediadora de mão de obra. | A empresa prestadora de serviços é especializada para certo tipo de atividade. O contrato ocorre sempre para prestação de certo serviço (limpeza, vigilância etc.). |
Percebe-se, portanto, que a admissão de trabalho temporário é bem restrita, mas sempre admitiu a terceirização da atividade-fim da empresa tomadora de serviços, ainda que de modo transitório. No entanto, no fenômeno que popularmente conhecemos como terceirização, que é aquele que geralmente encontramos em universidades, hospitais, órgãos públicos, nunca se admitiu a terceirização da atividade-fim (como as atividades de professores, médicos etc.).
– O QUE A LEI Nº 13.429/2017 DIZ SOBRE A TERCEIRIZAÇÃO?
A Lei nº 13.429/2017, em seu artigo 9º, § 3º, autoriza expressamente que o contrato de trabalho temporário pode versar sobre o desenvolvimento das atividades-fim a serem executadas. Na realidade, o enunciado normativo só consignou o que já era autorizado, já que o trabalho temporário nada mais é que mera intermediação de mão de obra.
Mas será que a nova lei também autoriza a terceirização em geral das atividades-fim das empresas, como foi anunciado pela imprensa após a sanção da lei? Não tem sido essa a interpretação feita por parte significativa dos juristas laborais nesses primeiros dias após a publicação da nova lei. É óbvio que ainda não há nenhuma obra literária específica tratando sobre o assunto (até porque a lei foi publicada há menos de cinco dias), muito menos o tema foi objeto de apreciação judicial, porém nos arriscamos a dizer que essa vai ser a interpretação que vai prevalecer no âmbito dos tribunais trabalhistas.
Inicialmente, é preciso ficar claro que parte significativa (arriscamos dizer que a maior parte) dos bacharéis que trabalham com o Direito do Trabalho é contra a terceirização ampla e irrestrita, até porque tem contato, diariamente, com os prejuízos causados pela terceirização nas relações de trabalho. Apenas a título de exemplo, o Ministério Público do Trabalho e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (que é a maior associação de juízes de trabalho do Brasil) já se declararam completamente contra a terceirização irrestrita. Em agosto de 2013, 19 (dezenove) dos 27 (vinte e sete) ministros do Tribunal Superior do Trabalho (órgão de cúpula da Justiça do Trabalho) também se manifestaram contra a terceirização ampla e irrestrita no país [1].
Assim, após a aprovação da nova lei na Câmara dos Deputados, vários estudiosos do Direito do Trabalho se debruçaram sobre a nova lei a fim de averiguar se a redação realmente autoriza a terceirização ampla e irrestrita e para procurar falhas deixadas pelo legislador. Não demorou, portanto, para que nomes respeitados do universo juslaboral tenham se posicionado em artigos sobre o tema.
Tem sido consenso, entre esses estudiosos, que a nova lei não deixou clara a permissão da terceirização das atividades-fim das empresas.
Com efeito, observe-se o que o artigo da nova lei pertinente à matéria diz que “empresa prestadora de serviços a terceiros é a pessoa jurídica de direito privado destinada a prestar à contratante serviços determinados e específicos” (Art. 4º-A da Lei n° 6.019/74 – redação incluída pela Lei nº13.429/2017).
Da simples leitura isolada do enunciado normativo supracitado se observa a ausência de qualquer referência às atividades-fim da empresa. Resta ao intérprete investigar o que o legislador quis dizer com as vagas expressões “serviços determinados e específicos”.
Parece-nos que tem razão o professor Gustavo Filipe Barbosa Garcia quando diz que, ao utilizar as expressões ‘determinados e específicos’, o legislador quis dizer que “a empresa prestadora de serviço não pode prestar serviços genéricos, não se admitindo a terceirização, pela empresa contratante (tomadora), de atividades sem especificação”[2].
Assim, a terceirização só é admitida quanto o contrato de prestação de serviços for claro ao determinar quais os serviços devem ser prestados (limpeza, vigilância etc.) e especifica-los (enumeração das tarefas atinentes ao serviço especificado). Vale lembrar que a empresa prestadora de serviços terceirizados sempre é contratada para prestar serviços especificados, não podendo servir de mera intermediadora de mão de obra. A nova lei, portanto, buscou reforçar esse entendimento já existente.
Poderia, então, um contrato de prestação de serviços determinar e especificar a terceirização de uma atividade-fim de uma empresa? Poderia esse contrato determinar e especificar a terceirização de professores em uma escola, por exemplo? A resposta é negativa.
Da análise da lei, percebe-se que, quando o legislador quis permitir a terceirização da atividade-fim, fez de forma expressa, no caso do trabalho temporário (art. 9º, § 3º). A interpretação mais sensata, portanto, permite concluir que, se o legislador quisesse estender a terceirização realizada pelas empresas prestadoras de serviços para as atividades-fim das empresas tomadoras dos serviços, também o faria de forma expressa.
A omissão do legislador, portanto, deve ser entendida como silêncio eloquente, ou seja, aquele que revela que a intenção do legislador foi calar. Essa foi a interpretação dada pela professora Vólia Bomfim Cassar[3], Desembargadora no TRT da 1º Região (RJ).
No mesmo sentido, o professor Homero Batista Mateus da Silva, Juiz do Trabalho no TRT da 2º Região (São Paulo e região) e autor de celebrada coleção sobre Direito do Trabalho, publicou artigo, em página de rede social utilizada para esse fim, onde diz, dentre outras coisas, que: “a) quando o legislador quis, usou a expressão atividade-fim; quando não quis, não usou; b) trata-se do mesmo texto legal, pelo que nem se pode argumentar que foram momentos históricos diferentes e normas diferentes; c) certamente haverá quem sustente que “serviços específicos” seja expressão equivalente a “atividade-fim”, mas isso não possui base doutrinária nem científica” [4].
Assim, nomes prestigiados no cenário juslaboral já vêm se posicionando no sentido de que a Lei nº 13.429/2017 não autoriza a terceirização ampla e irrestrita no Brasil, tendo ganhado força essa interpretação, especialmente porque, como já foi dito acima, os bacharéis que militam na área trabalhista são bastante resistentes à terceirização nas relações de trabalho.
Um leitor mais crítico deve questionar como essa interpretação pode prevalecer se aparentemente a intenção do legislador que aprovou a Lei nº 13.429/2017 foi realmente autorizar a terceirização ampla e irrestrita no Brasil. Deve-se frisar, no entanto, que o Projeto de Lei aprovado data do ano de 1998. Percebe-se, então, que a legislatura que aprovou não é a mesma que propôs o projeto de lei. Ao contrário, há uma diferença de quase 20 (vinte) anos entre a proposição e a aprovação do projeto.
Ficou nítido que a atual legislatura da Câmara dos Deputados resgatou e aprovou na pressa, sem grandes debates sobre a matéria, esse projeto de lei que datava de 1998. Dessa forma, é possível que grande parte dos deputados federais tenham aprovado o PL nº 4.302/1998 realmente imaginando que estavam autorizando a terceirização ampla e irrestrita no Brasil, mas sem sequer imaginar o quanto a sua redação é confusa.
Além disso, é certo que cabe ao intérprete, não ao legislador, o papel de traduzir o real sentido da lei. Nas palavras de Carlos Maximiliano:
A partir do momento em que o legislador conclui sua obra, esta passa a ter vida própria e independente. A lei editada liberta-se da influência do legislador tal como o bebê ao ter o seu cordão umbilical partido. A vontade primária daquele que redigiu a lei será lembrada através do elemento histórico, da interpretação sistemática e da busca do elemento lógico e teleológico, mas apesar disto a norma tem vida própria. [5]
O fato de a nova lei não permitir a terceirização ampla e irrestrita, porém, não a torna menos perniciosa. O que se viu foi uma tentativa ardilosa de aprovar a terceirização irrestrita através do resgate de um projeto de lei que tramita há quase 20 (vinte) anos, sem qualquer debate qualificado.
Jorge Luiz Souto Maior [6], professor da USP e Juiz do Trabalho no TRT da 15ª Região (Campinas/SP e região), em sua perspicácia conhecida, defende que a inconsistência técnica da lei é irrelevante para o legislador, já que o importante era aprovar uma lei que fosse vendida pela imprensa como muito pior do que o PL nº 30/2015 (PL 4.330/2004 quando tramitava na Câmara dos Deputados), que aguarda votação do Senado Federal.
Assim, o governo e sua base aliada poderiam aprovar o PL nº 30/2015, que, esse sim, autoriza de forma explícita a terceirização das atividades-fim das empresas, de forma consentida ou sem maior resistência, já que o Projeto de Lei que tramita no Senado, por garantir mais direitos aos trabalhadores terceirizados, aparenta ser menos ruim do que a Lei nº 13.429/2017.
Para perceber que o Souto Maior tem razão basta observar o noticiário dos últimos dias, que veiculou afirmações de parlamentares reconhecendo, sem o menor constrangimento, que a Lei nº 13.429/2017 é mais dura para os trabalhadores e que o Presidente Michel Temer desistiu de terceirização mais branda e optou por projeto da Câmara [7]. Além disso, vale lembrar que a referida Lei já está sendo questionada perante o Supremo Tribunal Federal, por possível irregularidade no processo legislativo, o que corrobora o desleixo do legislador com a lei.
Assim, aparentemente estamos presenciando um processo político ardiloso, onde uma lei cheia de imprecisões, que não é capaz de autorizar a terceirização ampla e irrestrita no país, está sendo usada para permitir que o governo aprove sua medida precarizante das relações de trabalho sem grande resistência. Restam aos trabalhadores a vigilância e a pressão das ruas para que isso não aconteça.
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[1] http://s.conjur.com.br/dl/oficio-tst-terceirizacao.pdf
[2] http://www.conjur.com.br/2017-abr-02/gustavo-garcia-lei-nao-clara-quanto-permissao-atividade-fim
[5] apud CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016, p. 99.
[6] http://www.jorgesoutomaior.com/blog/fora-terceirizacao