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A precarização do trabalho como regra

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Por José Cleyton Neves Lopes (Professor IFRN e Sociólogo)

Quando em meados de abril de 2015 o senador Hélio José (PMDB) do Distrito Federal revelou através de um áudio vazado o que estava no horizonte da política nacional, não deixou sobrar nenhuma dúvida de que o golpe parlamentar, que seria realizado no ano seguinte, tinha como principal objetivo desmontar a CLT e liquidar com os poucos direitos sociais duramente conquistados na constituinte de 1988.

Em um dos trechos da entrevista vazada pela impressa, o senador adverte que “Se Temer assumir, mas o problema é que vai assumir é o compromisso que ele teve de assinar com os bandidos do Cunha e com o grande empresariado […] Acho que vão chorar lágrimas de sangue para que o PT volte daqui a dois anos. Vão ver a desgraceira que vai acontecer nesse país com arrocho, onde servidor público vai ser tratado na pinhola, onde o servidor público vai perder os seus direitos“. Com aprovação do PL 4302/98, no último dia 23 de março, a maioria dos parlamentares demonstrou está empenhada em confirmar esse assombroso cenário apontado pelo senador brasiliense. Só resta agora a (contra)reforma da previdência e a (contra)reforma trabalhista, previstas para serem aprovadas ainda este ano.

Essa ofensiva contra os direitos sociais, iniciada com a PEC do teto dos gastos públicos, passando pela nociva reforma do ensino médio e representada agora pela aprovação da terceirização total e irrestrita, coloca a política nacional em marcha ré, a caminho dos anos 1990, quando a ordem era um Estado mínimo para atender as demandas sociais e máximo para as questões colocadas pelo grande capital.

Não por acaso o PL 4302 fora encaminhado ao congresso em 1998, pelo então presidente Fernando Henrique Cardos. Tudo isso é, de fato, um grande retrocesso. E só confirma o inescrupuloso comportamento das classes sociais dominantes, que compram o congresso e depois repassam o ônus para as classes dominadas. Uma correlação de forças indecorosa que ora se apresenta na cena política. Mas a cena política tem a sua fundamentação nas relações socioeconômicas e culturais. Portanto, para compreendermos melhor o que se passa no Brasil e não ficarmos paralisados e perplexos frente à corrosão dos direitos sociais, faz-se necessário ressaltar as transformações ocorridas nos últimos anos no mundo do trabalho.

O PL 4302/98 que libera a terceirização total e irrestrita no Brasil nada mais é que a institucionalização da flexibilização das relações de trabalho. Trata-se de um fenômeno social que tem se ramificado pelo mundo capitalista desde meados dos anos 1970. Por sua vez, esse movimento está atrelado à reestruturação produtiva e a nova forma de reprodução sociometabólica do capital. Aliás, no Brasil, o processo de flexibilização tem início precoce e sob o comando dos governos autoritários no dia 13 de setembro de 1966, através da lei 5.107, que institui o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em substituição à estabilidade decenal do empregado. Durante os anos 1990, o programa neoliberal do governo de FHC também aprofundou a flexibilização por meio de uma política global de privatizações e sucateamento das instituições garantidoras da rede de proteção social do trabalho. Todavia, em 2003 esse processo é parcialmente interrompido pelo então presidente Lula, muito embora a terceirização no serviço público e nas empresas estatais tenha avançado a passos largos em seu respectivo governo.

O processo de terceirização, assim como toda a reestruturação produtiva, resulta da globalização dos mercados. No Brasil, o exemplo mais notório dessas transformações no processo produtivo está na indústria têxtil. Com a abertura do mercado nacional nos anos 1990, as grandes indústrias do setor têxtil foram forçadas a diminuírem os custos da produção e repassarem para o trabalhador a maior parte dos riscos oriundos da lógica do mercado, de modo que elas passassem a ser mais competitivas. O rebaixamento dos salários, a fragmentação de pequenas unidades produtoras operando em rede com um número menor de trabalhadores e a maior produtividade, foram algumas das principais estratégias adotadas pelo capital. É nesse ínterim que a flexibilização das leis trabalhistas passou a ser uma das principais batalhas entre o capital e o trabalho nos últimos anos.

A partir das recentes mudanças na correlação de forças a favor do capital, como pôde ser claramente observado na cena política, a terceirização da produção se tornou um fato consumado. Contudo, a questão que se coloca agora é quais são as implicações da terceirização total e irrestrita para o mundo do trabalho. Conforme dados apontados pelo DIEESE e divulgados pelo jornal Brasil de Fato, quando comparado aos trabalhadores contratados, os terceirizados hoje realizam 3 horas a mais de trabalho diárias, recebem 24,7% a menos em termos salarias, permanecem 2,6 anos a menos no emprego, totalizam 90% dos trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão e são vítimas de 80% dos acidentes fatais no trabalho. Em suma, a terceirização se confunde assim com a total precarização do trabalho.

Em uma perspectiva sociológica, a terceirização altera os laços de solidariedade entre os trabalhadores, uma vez que promove relações de trabalho desiguais e simbolicamente hierarquizadas, ainda que se trate de trabalhadores com a mesma função dentro das empresas.

Essa ruptura dá lugar, por conseguinte, a uma forte competição entre os empregados e o enorme contingente de desempregados. A terceirização também acarreta uma experiência intermitente com o trabalho, causando ansiedade e depressão nos trabalhadores submetidos a essa forma de exploração. Além desses aspectos prejudiciais aos trabalhadores, o PL 4302/98 traz em seu escopo um outro agravante: amplia o contrato de trabalho temporário de três meses para 180 dias, consecutivos ou não.

Na prática, o empregador poderá recrutar para a sua empresa um contingente necessário a fim de atender a sua demanda de mercado e depois demiti-lo em até 180 dias sem custos adicionais. Para a lógica do just in time esta medida é totalmente adequada, quando houver demanda do mercado, emprega-se mais trabalhadores, ao final do período, demite-os sem arcar com o ônus dos direitos outrora garantidos pela CLT ao trabalhador. Em um país cuja rotatividade nos postos de trabalho é bastante expressiva, o PL 4302 apenas estabelece a precarização do trabalho como uma regra.

Com os laços de solidariedade rompidos, alta rotatividade nos postos de trabalho e uma consequente competição intensa entre os trabalhadores terceirizados, o movimento sindical se torna fragilizado, de modo que a resistência e defesa dos trabalhadores passam a ser dispersas e pouco efetivas frente à correlação de forças entre o capital e o trabalho. Não obstante, experiências intermitentes com o emprego alimentam uma crise identitária para o trabalhador, que não se reconhece mais como membro de uma classe social e tampouco de uma categoria profissional. O trabalho passa a ser tão-somente mais uma angustiante experiência social, deixando a sociabilidade que havia entre os trabalhadores no período fordista totalmente alterada e irreconhecível. É o que explica as dificuldades de mobilização encontradas pelas diferentes direções sindicais e os “ruídos” na comunicação entre trabalhadores e seus respectivos sindicatos. São linguagens e signos quase sempre distintos na relação da direção sindical com a base dos trabalhadores, sem vínculos e uma consequente falta de representatividade.

É sabido que a precarização do trabalho, isto é, a insegurança e a instabilidade são inerentes ao capitalismo desde a sua origem. O desenvolvimento das forças produtivas revolucionou a produção de bens e mercadorias, no entanto, intensificaram ainda mais a instabilidade dos mercados e consequentemente os empregos, progressivamente eliminados pelo processo de automação nas indústrias. Todavia, entre os anos 1960 e 1970, o mundo capitalista desenvolvido experimentou formas de proteção social do trabalho, copiadas em menor grau pelos países localizados na periferia do capitalismo, como o Brasil, que promoveram ganhos efetivos para os trabalhadores. Direitos sociais universais foram conquistados durante esse período, mas após a reestruturação produtiva e a globalização dos mercados, o capital passou a se reproduzir via espoliação desses direitos, transformando essas conquistas em mercadorias. O resultado foi o aprofundamento das desigualdades e uma crise estrutural profunda do capitalismo.

Em que pese as dificuldades encontradas hoje e os retrocessos colocados pelos governos neoliberais que se acenderam nos últimos tempos, inclusive no Brasil, todas essas ofensivas não são uma fatalidade da história, são processos políticos e ideológicos construídos ao longo dos últimos 30 anos. O individualismo e a competição não são comportamentos naturais dos seres humanos, são construções culturais e simbólicas agenciadas por grupos sociais interessados em expandir as suas respectivas dominações no âmbito da sociedade.

Portanto, ainda existem alternativas políticas que poderão descontruir esses interesses e mudar os rumos da história. Reconhecer as últimas derrotas e compreender a complexidade da ofensiva do capital expressa nas (contra)reformas implantadas ou que estão para serem aprovadas, não significa estar resignado, pois se trata de uma disputa civilizatória. Além disso, recuar frente a tais ataques poderá nos conduzir a um total colapso da sociedade. É preciso recuperar e estabelecer a proteção social do trabalho, se o objetivo for integrar a sociedade e reatar os laços de solidariedade.