A voz do erotismo lésbico precisa gritar
Por Juliane Karla de Oliveira Ataide (Professora de Filosofia e ativista dos Direitos Humanos das mulheres).
Quando conheci o feminismo, ele se colocou como um território, a princípio, onde ganhei a dimensão de que, mesmo aos 14 anos, eu tinha vivido fortes, tristes e traumáticas relações de opressão, discriminação e violência pelo fato de ser mulher, gordinha, “gostar de meninos e meninas”, com cabelos cacheados e o nariz largo.
Na universidade, no Coletivo Leila Diniz – ONG feminista onde fui educadora social em Natal – e nos movimentos feministas que atuei, tive contato com estudos sobre gênero, corpo, sexualidade e identidade e aos poucos fui tentando complexificar minha crítica ao patriarcado. Parava para perceber que em minhas relações erótico/afetivas havia produções de machismos e até violências sexistas e, mesmo assim, quando era uma relação entre duas mulheres. Às vezes em que fui chamada de machista por alguma atitude minha e não aceitei, fiquei revoltada, hoje reflito melhor ao parar para pensar por quem fui educada e vejo que pode fazer todo sentido aquela crítica.
Concordo com Judith Butler, filósofa feminista estadunidense, quando ela fala que o erótico tem que entrar no debate de forma estruturante, pois o erótico é muito político. Através dele ecoamos nossa identidade de gênero e nossa performatividade, o que vai muito além da performance apenas, mas tem mais a ver com o modo pelo qual fazemos nossa performance a partir do nosso desejo. Duas mulheres, embora sejam lésbicas, podem ser também sexistas. Historicamente nada muda o fato de uma mulher, no contexto de desigualdade, ter sua vida cerceada por sexismos, porém isso não a limita de se identificar com a forma de concretizar seus erotismos a partir de uma identidade sexista em relação ao feminino.
Como conheci as opressões de gênero nas minhas relações afetivas (românticas), mesmo eu sendo uma mulher em uma relação amorosa com outra mulher? Como posso conhecer amigas “sapas” que já foram espancadas, ficaram em cárcere privado, foram assediadas sexualmente, sofreram violência patrimonial, moral, xingamentos e humilhações públicas e privadas, mesmo estando numa relação entre duas mulheres?
Durante muito tempo o movimento feminista não assumiu o debate público da violência entre mulheres, entre mulheres atraídas pelo erotismo, entre mulheres que se desejam, pois na verdade o erótico seria o anuncio de uma posição política sobre a vida e parece que não há ainda acúmulo suficiente no debate para assumir que nós mulheres cometemos violência de gênero e sexista – como estupro, sexo sem vontade, cárcere privado, ameaças, xingamentos e etc. Isto pode estar relacionado com aquelas atitudes pautadas diretamente pela dinâmica da opressão sexual e de gênero.
Na relação, geralmente posta através de afirmativa como Vítima/Opressor, geralmente binária e heteronormativa de explicar a realidade e as violências sexistas, nós lésbicas ficamos sem ter onde discutir de fato nossas questões, a não ser em grupos específicos. Talvez se assumir e ampliar muitas questões, deixando o erótico existir de fato no debate sobre nossa existência e nossas violências sexistas, encontrássemos a responsabilidade dessas opressões em todas as relações da sociedade e que não é o Homem/Macho o opressor sexual e de gênero da Mulher/Feminino, mas, aparentemente, de quem se identifica simbolicamente com esse lugar. A postura de “homem” é gritar, regular, humilhar, expor, xingar, erotizar em excesso as relações; sendo assim, quantas mulheres se identificam com esse lugar e constroem aí seu campo erótico e, consequentemente, sua subjetividade?
Por isso tento desconstruir a categoria Mulher, bem como Homem, pois elas não parecem dar conta das complexidades envolvidas na nossa subjetividade, creio que temos que “eliminar” o Macho, valorizar e empoderar as Mulheres e provocar os Homens, seja de qual sexo eles e elas forem. Homem e Mulher aqui se colocariam como uma identidade social muito mais do que como uma condição, pois não nascemos mulher, não é verdade?
A voz da Sapa empoderada é a voz da visibilidade do erotismo e do desejo lésbico, a visibilidade da sua existência e das suas violências sofridas e cometidas, uma voz que ainda grita muito baixo tanto dentro da sociedade, por medo de exclusão, quanto no interior do movimento feminista por não assumir esse debate como pauta urgente, pois valorizar a Sapa é dizer que seu discurso vale a pena.