Search
Close this search box.

Violência e injustiça acadêmica: Um relato

Compartilhar conteúdo:

Quando pensamos em universidade e vida acadêmica, imaginamos que em nenhuma outra instituição palavras tão nobres e belas como mérito, ciência, talento, estudos, liberdade intelectual, tolerância, reconhecimento fazem tanto sentido. E no entanto, na rotina de suas atividades institucionais e práticas cotidianas, como as aulas, as conversas de corredores, reuniões de departamento, a formação de bancas para concurso, os conchavos para seleções de pós-graduação e o ritualismo vazio de bancas de defesa, realidade e ideal estão tão distante como nas universidades. Em vez do lugar do pensamento, do debate das ideias, da vocação para o conhecimento, do talento e do mérito intelectual, temos a universidade, muitas vezes, como um lugar de violências silenciosas, de sofrimento emocional emudecido, de injustiças microtirânicas, de perseguições e de assédios sistemáticos e abusos variados. Em suma, na precisa e forte imagem elaborada pelo pensador Michel Maffesoli, a universidade como um “teatro de assassinatos anônimos”.

O relato a seguir, de Maíra Leal, graduada em Filosofia e mestre em Ciências Sociais (UFRN), expõe em primeira pessoa a violência acadêmica, sua engrenagem perversa, a cumplicidade covarde e insensível de professores e, mais importante, suas consequências sobre a vida emocional e as expectativas de estudantes e jovens pesquisadores. Romper o silêncio é uma das principais formas de combater a naturalização e a repetição desses “assassinatos anônimos”, que ocorrem, de norte à sul, das humanas às exatas, nas universidades brasileiras.

Faz mais de um ano, supere isso

Por Maíra Leal

Passei meses negociando comigo mesma se ia fazer isso ou não. Pensei durante muitos dias, meses na verdade, sobre a validade dessas palavras. Um ano depois estou escrevendo e elas fluem e escorregam dos meus dedos, como se cada toque fosse uma forma de me libertar do peso delas.

As pessoas estranham um pouco que eu continue magoada, ou triste com o que me aconteceu. A velocidade da vida contemporânea faz todo mundo ter a impressão que tudo passa rápido… nada, pra mim, passa rápido, nada é esquecido (da memória as coisas escapam, mas a alma as aprisiona, sempre) e sim, um ano depois ainda estou chateada, magoada. Não estou mais desesperada, não estou mais triste. Desesperada eu estava enquanto chorava no colo da minha mãe um ano atrás, sem entender por que isso estava acontecendo comigo.

Enfim, na ocasião fui instruída por minha advogada, a não publicar nada online, porque prejudicaria as minhas chances de conseguir alguma coisa legalmente. Obviamente que as minhas chances de conseguir algo pelas vias legais eram quase nulas, por razões legais [sobre as quais não tenho vontade nem capacidade de falar] e também porque vamos ser honestas, sou desprovida de meios financeiros para sustentar um processo correndo no STJ.

0640486ce2274177310b6e030806aVocês podem estar se perguntando sobre o que eu estou escrevendo. Bem, há um ano, após ter passado na prova escrita do ingresso para o doutorado no departamento de Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde eu tinha feito o meu mestrado, fui reprovada na entrevista de maneira antiética, desonesta e francamente corrupta, sem chance de recorrer e sem que a entrevista tivesse sido gravada de nenhuma maneira.

Imaginem vocês que eu me dedicara inteiramente à preparação para a prova, tinha saído da casa dos meus pais e ido para a casa de uma amiga, porque precisava estudar mais, e mesmo depois de ter passado na prova mais difícil em primeiro lugar, fui reprovada numa entrevista que segundo o meu próprio orientador “era apenas uma formalidade”, esse mesmo orientador estava presente na minha entrevista do doutorado em uma ligação por skype, imaginem então qual foi o critério.

Pode ser que você esteja se perguntando, mas o que foi que você fez de errado, você não combinou com uma pessoa que ela seria sua orientadora antes de fazer a prova? Sim, eu tinha entrado em contato com uma professora por e-mail e tinha recebido uma mensagem dela dizendo que sim, que me aceitaria como orientanda… já falei que quando me candidatei já tinha a metade da minha pesquisa feita?  Pois bem. Eu tinha.  Eu tinha tudo, até não ter nada.

Ai você se pergunta, mas ninguém te ajudou? Nenhum professor do curso te ajudou?

Quando ameaçados os covardes se unem. Eu sou professora e meus pais são professores, mas esse tipo de comportamento, esse coleguismo, vindo de gente que ganha o triplo do que qualquer professor de ensino médio, essa chusma  que se reúne pra defender o que há de pior na universidade… nem preciso dizer o quanto isso é deplorável, preciso? Não estou falando de todos os professores e professoras, mas estou dizendo sim, com todas as palavras, que quem compactua com coisas erradas é tão errado do quem fez o errado em primeiro lugar, e a gente já sabe, o brasileiro tem a mais alta tolerância para a corrupção de todo o mundo.

A crônica de um ano.

Todo mundo pensa que a primeira fase do luto no meu caso foi a raiva, mas sabe como eu sou, gosto de ser original e então não senti raiva. A primeira coisa que eu fiz foi negociar, eu consultei uma advogada, escrevi um pedido de revisão de notas, escrevi justificativas até me sentir exausta e completamente dormente. Meu irmão insistia que eu tinha que continuar, que eu tinha que lutar, e eu negociava diariamente comigo mesma se deveria acordar e levantar naquele dia. A barganha não era só com o que tinha acontecido comigo, a barganha era comigo mesma, em como eu conseguiria viver com aquilo, um dia depois do outro.

Tive a oportunidade nessa fase de me reconectar com dois professores maravilhosos da minha graduação, encontrei Markus numa passeada e ele me disse que eu deveria tentar o doutorado em filosofia. Depois eu entrei em contato com a Monalisa e nem posso dizer o quanto me senti tocada pela generosidade dela, eu estava por um fio… e claro que a entrada pro doutorado em filosofia não deu certo, uma falha técnica me impediu de enviar os documentos pra inscrição na prova.

Na verdade o fracasso tem um odor próprio, e eu fedia a fracasso, até o computador sentiu. Acho que nessa época eu já estava na segunda fase, eu já estava negando que isso tava acontecendo comigo. Eu não fiz nada de errado, porque isso tá acontecendo comigo? A pobre criatura aka eu, se perguntava isso diariamente.

A fase que durou mais tempo foi a depressão. Mais do que o fedor do fracasso, mais do que a negociação, mais do que a incapacidade de me deparar com a minha realidade, mais do que tudo, aquilo tudo me deprimiu. Não estou dizendo isso para que vocês tenham pena de mim, estou dizendo porque talvez a minha história ajude alguém como eu. Eu me mudei pro Rio certa de que se eu ficasse em Natal esse estado poderia se instaurar indeterminadamente em mim. Mas como diz a minha mãe, a gente carrega os problemas com a gente, no nosso corpo, e isso é verdade. Eu não consegui trabalho, não passei no doutorado aqui, engordei 10 kilos, e até o exato momento em que escrevo isso o meu futuro não está decidido.Nos últimos meses fiz concursos e provas e agora que estou aqui me pego pensando que esse texto pode ser uma superexposição e pode vir “morder meu traseiro” no futuro. Mas não falar de alguma coisa não faz com que essa coisa não esteja presente, faz?

Tive que escrever um memorial para um trabalho e escrevi isso

“Se há algo do qual eu posso me arrepender durante esse período é de não ter sido mais ambiciosa. A verdade é que um trabalho bem feito, original e honestidade intelectual não são os únicos requisitos para o sucesso na carreira acadêmica. Uma pessoa precisa de uma grande dosagem de ambição, mesmo que desproporcional a qualidade daquilo que ela apresenta e isso é o que você mais vê nos professores e alunos de pós-graduação hoje em dia, na minha opinião. Digo isso porque eu não publiquei muitos trabalhos durante o mestrado, nem apresentei trabalhos em mesas-redondas, porque acreditava que meu trabalho ainda precisava ser polido e precisava amadurecer.

Sempre tive intenção de publicar a minha dissertação de mestrado como livro e em 2015 conquistei um dos prêmios de publicação do Sebrae/RN e publiquei meu primeiro livro, A Imagem da Pessoa Comum: sobre os filmes dos Pontos de Cultura de Natal/RN em dezembro desse mesmo ano.

Com o livro debaixo do braço achei que deveria dar continuidade a minha carreira acadêmica e por essa razão me dediquei a entrada do doutorado em Ciências Sociais.

Entretanto, apesar de ter passado em primeiro lugar na prova escrita, não fui aceita no programa porque não consegui pontuação suficiente para passar na entrevista. Na realidade eu não tinha mentido, não tinha apresentado trabalhos sem critério, não tinha escrito artigos à quatro mãos e nem tinha publicado trabalhos plagiados, práticas comuns na academia.

Como eu disse, a minha honestidade intelectual me custou uma vaga num programa de doutorado que me pertencia. Integridade é uma qualidade difícil de possuir, mas não beijar mãos, não pedir benção, não fazer política foram escolhas e eu as assumo. Alguém pode vir citar as regras do campo de Bourdieu como razões pelas quais eu não fui aceita no doutorado, eu não segui as regras, logo eu fui expulsa do campo… mas vale à crítica: se a teoria dos campos de Bourdieu fosse aplicada a realidade social o tipo de argumento circular sustentado por Boudieu impediria que as mudanças sociais acontecessem, não haveria nunca, revolução, e nós não podemos viver sem a possibilidade da revolução, podemos?”

Por que escrevi isso num memorial para um emprego? Porque agora, um anos depois, eu sinto raiva. Sinto muita raiva.

Quem dá a outra face é Jesus. Eu não sou Jesus!

33578964_ZnpK1nBY_6L6_PmrLDEwXDGPedEVj47LXUj41LcZhCkEu definitivamente não sou Jesus e escrevo porque  fui injustiçada pelo departamento de Ciências Socias da UFRN, fui traída por pessoas que eu admirava, a quem dediquei o meu primeiro livro – a irônia dos fatos não me escapa, podem procurar, tem exemplares na biblioteca, na livraria  da cooperativa do campus, na secretaria da pós de CS – posso dizer com certeza que não sou a primeira vítima de má fé, e posso afirmar que no ano passado não fui a única, que não sou a primeira. Afirmo que apenas 1/3 do corpo discente do doutorado que entrou ano passado é formado por mulheres. Isso é um fato.

Afirmo que o ambiente universitário está longe de ser o campo democrático que afirma ser. Afirmo com certeza que você será usada pelos professores enquanto você for ponto pra progressão de carreira deles. Afirmo que honestidade intelectual não levará você a lugar nenhum, nem originalidade, nem trabalho duro. Afirmo que serão poucos os professores que você vai encontrar que são capazes de superar a conformidade, a banalidade, e até mesmo a ridicularidade do seu pequeno poder.

Admito sim a minha culpa, a minha máxima culpa – estamos católicos hoje senhoras e senhores – admito que nem sempre fui perfeita, que meu trabalho tem erros, que eu sou, eu mesma, imperfeita. Admito que sinto raiva, ainda, que não superei, ainda.

Não admito, todavia, que me chamem de má perdedora, porque na vida, como no campo de rugby, você vai encontrar poucas pessoas que saibam ser melhores perdedoras do que eu.

Resolvi escrever isso aqui, um ano depois, porque eu não perdi, como quem não perde uma briga a pessoa que é esfaqueada pelas costas, eu sofri e sofro com a injustiça que nunca vai ser reparada, que pode desaparecer da memória mas que será aprisionada na alma e se você disser “Faz mais de um ano, supere isso!” eu te direi “vai se foder” foda-se o “eles passarão” foda-se o Quintana, eles não passarão, eles estão aqui no mesmo mundo que a gente, vivendo a vida cheia do que eles roubam com sua tacanhice miserável, sua ambição abominável, sua falsa meritocracia, sua falsa democracia. Eu não sou passarinho, sou a merda de uma gavião.

O que eu falei, estágio da raiva.