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A intolerância nossa de cada dia (ou o que a esquerda brasileira pode aprender com 2016)

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Não vai ter golpe! Vai pra Cuba! Impeachment já! Fora Temer! Bolsomito! Lula na cadeia! Fascista! Reaça! Pão com mortadela! Alienado! Bandido bom é bandido morto! Manipulado! Dois mil e dezesseis foi o ano do golpe. Para outros, o ano do impeachment. Por que não golpeachment?! O ano dos coxinhas e dos petralhas. Um ano de acirramento da luta de classes.

Vimos, ao longo de 2016, a formação de dois blocos deveras heterogêneos. Um deles foi denominado como petralhas, composto, em linhas gerais, por pessoas ligadas a ideias e ações endereçadas a um projeto de sociedade mais democrática e equânime. Mas não apenas: este grupo também comporta aqueles contrários ao impedimento da presidenta Dilma Rousseff, seja pelo motivo que for – inclusive a inconstitucionalidade do processo. Ou ainda, qualquer outro ser humano que os coxinhas julguem petralhas: homens com barba vestindo camisa vermelha, feministas, estudantes de ciências humanas, etc, etc.

O outro, denominado como grupo dos coxinhas, se constitui por aqueles ligados – conscientemente ou não – a um projeto que defende a redução do papel do Estado nas esferas social e econômica, bem como a ampliação da função do Estado enquanto regulador da vida privada de uns tantos: os pobres infratores, os casais homoafetivos apaixonados, as mulheres que preferem interromper a gravidez, aqueles que professam uma fé de matriz africana, entre outros. Alguns dos coxinhas apenas são contra a corrupção e o uso indevido do dinheiro público. São pessoas bem-intencionadas, inclusive. Mas um pouco atrapalhadas: na tentativa de combater a corrupção e o uso indevido do dinheiro público, acabaram por levar ao poder um grupo político corrupto, que assume a postura de Robin Hood às avessas quando o assunto é orçamento público e cujo representante mais visível é a figura patética de Michael Timer – para presidentes entreguistas, é preferível adaptar o nome à língua inglesa. Outra parte dos coxinhas apenas insiste no tema da corrupção a fim de demonizar o Estado e com isso conseguir avançar o ideário neoliberal. E aqui, neste grupo, também cabem todos aqueles que os petralhas julgam como coxinhas.

No espectro político, os primeiros se encontram mais à esquerda e os segundos mais à direita, embora alguns não saibam, e outros neguem. Na verdade, muitos não sabem sequer o que implica se posicionar de um dos lados da polarizada disputa. E em ambos os lados estão mães, pais, filhos, filhas, homens, mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, pessoas chatas e pessoas legais. E sim, o seu romance de 2017 pode estar em qualquer um dos lados!

Mas, como disse Luiz Fernando Veríssimo, “uma pessoa é uma coisa muito complicada. Mais complicado que uma pessoa, só duas. Três, então, é um caos, quando não é um drama passional”. Portanto, nem tudo são coxinhas ou petralhas, há, ainda, a versão híbrida: aqueles meio coxinhas e meio petralhas. E não são poucos. Ouso dizer que de coxinha e de petralha todo mundo tem um pouco! Se identificam aqui ou ali com os petralhas, mas para determinados assuntos se sentem mais próximos aos coxinhas, e vice-versa. Apesar de muitos, nunca são percebidos pelo seu caráter híbrido. Sempre são notados ou como petralhas ou como coxinhas.

Ao final do ano de 2016, a disputa retórica entre coxinhas e petralhas não produziu vitoriosos. Embora nem todos os coxinhas imaginem, 2016 foi um ano duro tanto para eles quanto para os petralhas. Talvez um ano mais duro para alguns coxinhas do que para uma parte dos petralhas. O motivo é que não é a posição de classe de alguém que irá definir seu posicionamento político. Há trabalhadores de poder socioeconômico alto que se identificam com a esquerda e trabalhadores das camadas socioeconômicas menos favorecidas que se identificam com a direita política. Até aqui não há nada de surpreendente. É, inclusive, esperado que isso aconteça. Basta olhar ao redor e perceber os aparelhos ideológicos de conformação da ordem social que permeiam a sociedade brasileira. Não há necessidade, tampouco é interessante para a luta política, criar um meme ou uma piada para constranger o “pobre de direita”. Como nos lembra insistentemente Marcelo Freixo, a luta é pedagógica.

Enquanto coxinhas e petralhas trocam farpas, a burguesia dorme o sono dos anjos e o governo de Michel Temer, em conjunto com sua base aliada de deputados e senadores, aprovam suas contrarreformas, como a PEC do “Novo Regime Fiscal”, que irá congelar o orçamento das despesas primárias do governo federal por vinte anos, e a já engatilhada PEC 287, que pretende, dentre outras atrocidades, estabelecer a idade mínima de 65 anos para aposentadoria e o prazo de longos quarenta e nove anos de contribuição para que se possa solicitar a aposentadoria integral.

Cabe aqueles que se identificam com a bandeira da esquerda ou, como propôs Jacob Gorender[1], aqueles que se identificam com “movimentos e ideias endereçados a um projeto de transformação social em benefício dos explorados e dos oprimidos” não a construção de memes, piadas ou ofensas que apenas afastam mais ainda os “coxinhas” do nosso projeto de sociedade, entregando-os de mãos beijadas para a direita que, com seu discurso fácil e maniqueísta, espera ansiosamente para cooptá-los com suas ilusões. Ao invés de chamar aqueles que não conseguem ainda se orientar bem no espectro político de fascistas, coxinhas ou alienados, por que não os convidamos a refletir? Por que não os escutamos? Ouvimos suas demandas e, então, mostramos que outras soluções são possíveis, que outra forma de pensar é possível além daquela apresentada nos meios de comunicação de massas.

Lembre-se que esse alguém que insistentemente é apontado como coxinha pode ser sua mãe, seu pai, sua vó, seu avô, seu amigo ou até seu crush. Portanto, tenha paciência. Converse. Não tente impor nada. Não tenha pressa. Não se irrite caso o outro discorde de você e para isto apresente argumentos falaciosos. Às vezes, o ser humano na ânsia por legitimar “sua verdade” acaba recorrendo a esse tipo de artimanha. Nestas situações, o diálogo, acompanhado de humildade, é sempre bem-vindo, e com certeza repercutirá algo positivo aos interlocutores, nem que seja uma pulga atrás da orelha. Insultos e ofensas, pelo contrário, criam aversão e antipatia.

Para isto é preciso, além de estar preparado, bem informado e disposto a construir uma outra sociedade e não a figura do “superior, o sabe tudo”, saber que a esquerda não é, por obra divina, a representante dos interesses dos mais pobres. É preciso desconstruir de uma vez por todas essa ideia de coxinhas e petralhas, que só contribui para polarizar ainda mais a classe trabalhadora. E é preciso, por fim, saber dialogar com os diversos setores da sociedade – sobretudo aqueles que tiveram, historicamente, as vozes silenciadas – para que então se construa uma representação legítima. Não há coxinhas ou petralhas! Um feliz 2017 e, como disse Marx e Engels, trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!

[1] Em Combate nas trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada.