Ligo o Face de manhã, sem nem tom café, e vejo o feed pra catar o que tem de bom. Aí vem essa reportagem do El País. Me assusto com o título: “Maior facção criminosa do Brasil lança ofensiva empresarial no Rio”. Como assim, gente? Acreditem ou não, a primeira coisa que me veio foi a inserção dos associados do PCC no comércio legal, ideia reforçada pela foto (belíssima, por sinal) de soldados do tráfico no início do texto. Mas rapidamente o equívoco se desfez: trata-se de uma disputa territorial pelo tráfico de drogas. Pensei em guardar isso pra mim mesmo e meus contatos no Face, mas faz tempo que não publico aqui e queria deixar um singelo presente de Natal para vocês. O que se segue é uma versão alterada e revisada do que publiquei na rede social.
Gente, eu apenas estou chorando de rir com essa ~reportági~. Vamos lá:
1) o El País botou um título digno da veja, tão sensacionalista quanto. O pior é que o título faz todo o sentido;
2) a estratégia empresarial (sem aspas mesmo) do PCC é boa, mas não tem nada de inovadora. Todos os grandes empreendimentos coloniais (e eu falo “colonial” no sentido amplo, já que não existe uma coisa como o pós-colonial) surgidos com o capitalismo seguem a mesma lógica e funcionam até hoje – não é à toa que tem uma região em Antuérpia, na Bélgica, que concentra a maior parte da venda de jóias preciosas do planeta. Adivinha de onde vem boa parte dos diamantes comercializados lá? Isso mesmo, de territórios africanos (colonizados pelos belgas ou não). O que existe de chocante ao leitor incauto (à esquerda e à direita) é que um bando de criminosos possa se articular politicamente para atingir seus fins, e seguindo estratégias de empresários amparados pela lei;
3) Alexandre de Moraes não é citado na reportagem, mas é bom lembrar que a) ele já foi advogado do PCC e b) quer erradicar o consumo de maconha do Brasil. Nem eu, abstêmio, acredito na exequibilidade da proposta. O Ministério da Justiça e Cidadania publicou uma nota tentando desfazer o equívoco, afirmando que a imprensa tratou erroneamente do assunto ao enfatizar a guerra às drogas. Só que a nota afirma ainda que se trata do “(…) combate à criminalidade transnacional, em especial, tráfico de drogas, de armas e contrabando, que financiam o crime organizado no Brasil” e, embora se possa alegar que a maior parte do lucro do tráfico vem da cocaína, a proposta ainda soa absurda, mesmo da forma como é colocada no texto. Você sente a palhaçada acontecendo quando percebe a visão estratégica da organização, que trata o Estado como inimigo. Só falta o ministro da Justiça (?) declarar que vai brincar de gato e rato com o PCC;
4) o tráfico de drogas, nesses termos, ganha um contorno político digno de Carl Schmitt, na medida em que se relaciona com o estado com base na dicotomia amigo-inimigo, com todas as nuances que o jurista alemão pensou. O que o PCC propõe é uma política de amizade (para usar a expressão de Jacques Derrida, que também leu Schmitt) articulando não só os traficantes, mas os criminosos como um todo, na batalha pela aniquilação da coisa pública, que é o grande inimigo de sua atividade. É bom notar, porém, que para Schmitt o embate é contínuo, de modo que erradicar o inimigo equivale a erradicar a si mesmo – não existe nada pior para um traficante do que a legalização das drogas. Os traficantes e figuras públicas que a eles se associam sabem muito bem disso;
5) o que a direita mediana não percebe é que a lógica do tráfico também é de direita, sobretudo da direita conservadora. Ora, a ideia de tráfico só pode se perpetuar com a ideia de moralismo, de algo que é proibido e danoso à própria existência humana, e o moralismo é parte fundamental da visão conservadora de mundo. O traficante, assim como o conservador, quer impor sua vontade na base da força (da tradição?); também tem seus códigos de ética, suas hierarquias, sua vontade de manter (conservar, dã) o status quo. Tudo isso tá no discurso do PCC (e também no do atual governo, dada a ampla resistência dos parlamentares em discutir a legalização da maconha, por exemplo);
6) finalmente, não posso deixar de puxar a sardinha pra minha brasa e chamar a atenção de quem apoiou o impeachment, com todo o pacote de medidas que o governo golpista vem executando. Dentro desse pacote, se situa a reforma da educação básica, com a exclusão da filosofia e sociologia da matriz curricular. Não venham com isso de “tema transversal” porque filosofia e sociologia não são temas transversais porra nenhuma. São disciplinas bem consolidadas e importantes para a formação existencial, não apenas cidadã. Pois bem: Marcos Camacho, ou Marcola, líder do PCC que não é citado na reportagem (o que pode ser considerado como medida de sua força), é leitor de Maquiavel. Maquiavel é considerado pai da ciência política e é um divisor de águas na filosofia política ocidental, de tal forma que boa parte do que veio em seguida pode ser lido como uma tentativa de resposta aos problemas que ele colocou, incluindo não só Schmitt lá em cima, mas também pensadores como Rousseau e Marx. (Aliás, a esquerda também tá precisando dar uma lida em Maquiavel, mas isso é outro papo.) Isso demonstra o quanto o pensamento filosófico é capaz de fazer por alguém, mesmo quando se trata de um criminoso. E, considerando o pouco que li, não duvido da capacidade de articulação política de Marcola – e, consequentemente, das ações que o PCC vem realizando no Rio de Janeiro. A direita também sabe disso e, eliminando a filosofia e a sociologia do currículo do ensino médio, cortou parte da solução do problema do tráfico pela raiz, na medida em que priva os jovens de ferramentas valiosíssimas para a compreensão de nossa sociedade. O PCC, Mendonça Filho (atual ministro da Educação, só pra não deixar ponta solta), Alexandre de Moraes, os traficantes e criminosos de colarinho branco agradecem.