Por Diego José Fernandes Freire (Prof. de História e Historiador)
Segundo Jorn Rusen, importante historiador alemão especializado nas discussões a respeito da teoria da história, todos os homens e mulheres pensam historicamente. No nosso dia a dia, para realizarmos as mais distintas tarefas, realizamos operações mentais em que o passado é acionado para fins de orientação no presente e projeção do futuro. Quando fazemos isso, pensamos historicamente, já que articulamos a temporalidade para fins práticos. Na ontologia de Rusen, lembrando as ideias aristotélicas, o ser humano é um animal histórico, ser vivente no fluxo do tempo. Assim, o pensar a história, isto é, interrogar-se sobre o movimento humano no tempo, é uma prática humana que está para além da ciência da história e, portanto, dos historiadores profissionais. Refletir sobre a história não é monopólio de nenhuma classe ou categoria intelectual.
Tais considerações abrem a possibilidade de discutirmos como determinados indivíduos ou grupos sociais pensam historicamente, como veem a história e constroem uma dada concepção desta para os mais variados objetivos. A maneira como vemos a história, o transcurso das ações humanos no tempo, não é natural, já que recebe influencia da sociedade em que vivemos, assim como é condicionado pelos interesses políticos que assumimos. Nesse sentido, no momento em que o nosso país vive um momento chave de sua história, no sentido de que importantes decisões estão sendo tomadas, é interessante discutirmos algumas visões da história veiculadas por aqueles e aquelas que estão na dianteira do processo histórico brasileiro. No mar revolto de reformas institucionais e emendas constitucionais em que estamos imersos atualmente, podemos observar vários discursos em que uma determinada perspectiva sobre a história emerge, orientando falas e posturas de atores políticos. Assim, selecionando as discussões em torno do Pacote de Emenda Constitucional (PEC) 55 – medida que mudará as regras do jogo fiscal da economia nacional -, especialmente do grupo a favor de tal emenda, que concepções de história podemos identificar?
Para além dos vários argumentos econômicos, fiscais e constitucionais que justificariam a PEC 55, existe um determinado entendimento da história que dá também subsídios para tal defesa. Trata-se de uma visão histórica determinista segundo a qual a saída da crise econômica do Brasil estaria apenas e unicamente em um ajuste fiscal como a aprovado no dia 13 de dezembro no Senado, em votação de segundo turno. Não haveria opções e outras possibilidades: somente a PEC 55 seria capaz de abrir um futuro diferente para a sociedade brasileira. Daí a máxima de muitos políticos e comentaristas da nossa atual crise: “ou aprova a emenda, ou o Brasil quebra”.
Tal discurso fatalista tem sido enunciado por vários deputados federais e senadores que apoiam a reforma fiscal do presidente interino Michel Temer. A senadora gaúcha Ana Amélia (PP- RS), em sessão do dia 10 de outubro de 2016 (https://www.youtube.com/watch?v=j7_PkqKF2YM), deixou claro em seu pronunciamento a visão de que “não há outro remédio para o mal que nos acomete”, de modo que “o tratamento já foi prescrito”.
A velha imagem do Brasil como um paciente acamado, presente em vários autores do nosso pensamento social do começo do século passado, volta a aparecer no debate público para afirmar a inexorabilidade de nosso presente e futuro.
Mesmo em parte da reação crítica e de oposição a PEC, encontramos o discurso fatalista expresso nas ideias de “PEC do fim do mundo”, “PEC da morte”. Poder e crítica caíram no mesmo jogo discursivo de em concepção petrificada e inexorável de história.
Semelhante aos discursos de fins do século XIX e começo do XX que diagnosticavam a incapacidade congênita do brasileiro civilizar-se, temos agora em 2016 com a defesa da PEC 55, ao acreditar que, sem a aprovação desta, o destino de nossa economia é a falência das finanças públicas. Antes e agora, é uma mesma concepção de história que comparece e que assegura uma previsibilidade negativa para o futuro da nação. Se intelectuais como Nina Rodrigues (1862-1906) e Oliveira Viana (1883-1951) acreditavam que fora do branqueamento da raça não haveria salvação para o Brasil, hoje alguns políticos creem que a redenção da economia brasileira somente virá a partir de uma reforma fiscal como a encabeçada pela bancada do governo no legislativo.
Aloysio Nunes (PSDB – SP), um dos homens fortes do governo Temer no Senado que defende a medida do novo teto fiscal, faz sempre questão de lembrar a PEC 55 como “um mal necessário, como um caminho que precisamos percorrer contra nossa vontade” (https://www.youtube.com/watch?v=vpMorOw54WI). Ora, em uma sociedade marcada pela dicotomia Bem X Mal, na qual este último é sempre negativizado e demonizado, só aceitamos o malefício quando ele é necessário, para não dizer inevitável. Mais uma vez, a Emenda Constitucional em apreço é representada como uma espécie de remédio curador que devemos tomar a contragosto, de modo que ela acaba por se colocar no horizonte político como algo vital. Condição sine qua non para o desenvolvimento do país, a PEC 55 funciona na retórica de seus defensores como uma medida que fecha a história para outras possibilidades. Há aqui um forte conteúdo messiânico de crença dogmática, que a faz ser a salvação do país, a redentora da história brasileira. Ela – e somente ela, por si só – seria o agente solucionador da crise econômica. Como um milagre que traz a cura de um enfermo, todos os problemas de crescimento econômico, de dívida pública, de tributação etc. seriam resolvidos com uma simples aprovação. De uma visão determinista da história passa-se para uma visão salvacionista, componente tão comum na cultura política brasileira republicana.
Com tais perspectivas, acabamos por perder a dimensão possibilista e contingente da história. Esta fica na dependência de um movimento dicotômico: ou aprovação da PEC 55 ou crise econômica. Não à toa, o exemplo grego, país que recentemente decretou moratória, comparece nas falas de vários políticos pró PEC 55. Vale aqui lembrarmos que, tanto na Câmara como no Senado, os defensores da referida PEC armaram-se defensiva e ofensivamente para não permitirem o acréscimo ou retirada de nenhum ponto do projeto, em uma nítida atitude de intransigência. O espaço dos possíveis, ou seja, a referência a outras possibilidades, a outras propostas para solucionar a situação em que estamos, acaba não encontrando voz, sendo silenciada e abafada por um único e exclusivo caminho. Ao invés de abrir a história, a militância política pró PEC 55 acaba por fechá-la, sufocando-a para uma única direção. Com isso, o debate, e a própria democracia, saem prejudicados, pois pluralizar as visões é um elemento fundamental em uma conjuntura democrática. Absolutizar a história, isto é, vê nela uma só direção, um único sentido, é cair em um autoritarismo próprio a certos regimes fascistas e a fundamentalismos religiosos. Emparedar a história e imaginá-la como que empurrada para um único caminho empobrece a experiência democrática de homens e mulheres que procuram soluções para um determinado contexto problemático.
O historiador alemão que vivenciou o regime nazista, Reinhart Koselleck (1923-2006), em seu livro Crítica e crise, afirma que em contextos traumáticos é fundamental investirmos na dimensão aberta da história, na medida em que traz o futuro como construção possível, a depender das ações realizadas no presente vivido. Tal concepção da história, relativamente otimista, preserva a ideia de imprevisibilidade do viver e agir humano, e impele os indivíduos para a realização de seus projetos coletivos. Essa concepção de história, com os discursos que advogam a PEC 55 como a cura dos males econômicos e políticos do Brasil, sofre um duro golpe, sendo intencionalmente escanteada. No centro (leia-se: no único lugar possível) fica uma visão determinista da história que empobrece e enviesa não só o debate público, mas a própria capacidade de imaginar outros futuros, outros caminhos. Assim, rejeitar a reforma fiscal que o governo propõe passa por defender uma visão da história sem determinismos e fatalismos, enfatizando a contingencia da vida humana. A história, ontem como hoje, é sempre um campo de possibilidades que depende das ações humanas e dos processos sociais. Seu fim, sua direção, o caminho que trilhará, estará sempre em aberto.