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O jogo

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O jogo era assim, girávamos o ponteiro que marcava os minutos de um relógio de parede, que estava quebrado, e que púnhamos sobre uma mesa redonda. A direção em que indicasse o ponteiro seria a pessoa a qual faríamos às perguntas.

 

TÁ- TÁ-TÁ-TÁ-TÁ-TÁ TÁ – TÁ-TÁ-TÁ-…

 

O ponteiro, impulsionados pelos dedos, fazia um ruído tal qual o tambor de um revólver.

 

“… E o que você acha da bunda da Karina, beto?” Disparou  Vanessa na minha testa.

Fiquei sem ação.

 

images-2Karina olhou para mim com olhos apertados de uma gata quando se esfrega em nossa perna levantando o rabo. Ela percebeu a minha inquietação. Deu um sorriso ao entornar o copo. Deixou escapar um pouco do gás de sua cerveja num arroto tímido; que também escapava de seu nariz pequeno. Tentou abafar com o punho fechado por sobre os lábios, como quando vamos tossir, de modo que cobrisse também as cavidades do nariz, fazendo com que os olhos ficassem um pouco umedecidos com a pressão. Pediu desculpas.

Ela ainda não imaginara o quão disposto eu estava em tragar qualquer coisa que expelisse aquele seu corpo maravilhoso. Porque, debaixo daquela pele morena, adormecida, agia um magma, uma caldeira, que deixava uma indicação com os vapores que subiam de seus poros.

 

Márcio, que estava ao lado, também riu. Um riso sem graça. Pra não perder a piada. Ou, como por inércia, porque apenas viu Karina sorrir.

Márcio ficava o tempo todo mimando Karina com diminutivos ridículos que todo casal se se dá em início de namoro, como; “amorzinho”, “benzinho”, “bonequinha.” Levava comida até sua boca com a colher. Se pudesse, também mastigaria por ela. Karina sabendo disso, se aproveitava. Enchia-se de manhas. Era uma putinha cheia de caprichos. Tinha um pudor cínico, que remetia as heroínas de Marques de Sade ou de um dos contos de Nelson Rodrigues. Sabia também que eu a desejava e não perdia a oportunidade de me provocar. Mesmo na frente do Márcio, seu namorado, meu amigo.

Vanessa acompanhava tudo de perto. Rondava como um animal no cio. Não saberia dizer se por ciúme ou se também gostava do jogo. Da malícia da sedução. Havia uma tensão no ar. Eu não tinha visto o calendário. Aquela era uma noite de lua cheia.  Certamente alguém sairia dali arranhado. Com marcas de mordidas no pescoço e restos de carne presos às unhas. Mas era algo para o qual nós nos precipitávamos. E apesar disso, não saberia dizer para aonde estávamos indo…

 

“Normal”

“Como assim normal?” Retrucou  Vanessa?

“ Normal…é…normal…uma bunda normal”

– Mentiroso! Você tá mentindo. Já sei você não pode dizer a verdade porque está na frente de seu amigo. Eu vi você olhando pra bunda da Karina!

“…Eu…eu  estou sendo sincero…”

“Sei…”

“Ah, agora o beto vai ter que tirar a roupa!” Disse a Karina rindo , lá do seu canto.

Quando nós nos negávamos a responder as perguntas do “Jogo”, ou quando alguns dos participantes achavam que a pessoa a qual estavam sendo direcionadas as suas perguntas não estava sendo convincente, que estava mentindo, o castigo que lhe era imposto era que fossem tiradas às peças de suas roupas.

 

 

Na sala de minha casa, em volta da mesa, a Karina estava só de calcinha e sutien. Márcio, de cueca. E eu, só de bermuda. Vanessa era a mais composta de todos nós. Com um vestido que lhe cobria até a altura dos joelhos. Logo, também era mais sincera. Eu ainda estava excitado, e quando tirasse o short, todos iriam perceber. Que merda!

TÁ-TÁ-TÁ-TÁ TÁ- TÁ-TÁ-TÁ-TÁ-TÁ TÁ – TÁ-TÁ-TÁ…

 

Era madruga agora. Chovia. A cabeça de Márcio pendia sobre o ombro de Karina; quase roncando. Para Márcio, permanecer com sua cueca, defender a sua virtude, fora algo que exigiu muito de si, além da quantidade de cervejas que havíamos tomado. Vanessa e eu fomos implacáveis nas nossas perguntas.

De tempos em tempos eu enchia o copo dele. Desejei que ele dormisse e que não acordasse logo. Assim poderia me demorar sem constrangimentos sobre o corpo de Karina. Nós, Márcio e eu, nos conhecíamos desde adolescentes. E eu, sendo seu amigo, deveria sentir um peso em minha consciência. Flertando com sua namorada quase embaixo de seu nariz. Mas quando se trata de instintos, a moral é algo por demais abstrato.

Um centro de plástico, o qual depositávamos nossos copos de cervejas, também estava repletos de bitucas de cigarros fumados por mim e por Vanessa. Karina também acendeu alguns cigarros. E mesmo não sabendo tragar, nos acompanhava. Era normal porque ela tinha a curiosidade comum da sua idade; que era de dezesseis anos.

TÁ-TÁ-TÁ-TÁ TÁ- TÁ-TÁ-TÁ-TÁ-TÁ TÁ – TÁ-TÁ-TÁ…

“ Qual a fantasia que você ainda não realizou com o beto?” Disse Karina para a Vanessa

“Eu quero vê-lo comendo outra mulher…”

“….!?”

“…Na minha frente. Eu quero vê-lo comendo outra mulher na minha frente!” Dizendo isso Vanessa entornou seu copo e deu uma olhada para Karina, que ficou sem saber o que fazer. Ela não esperava por aquilo. Nem eu.

“Mas…você não…não ia ficar com ciúmes do beto?”

“ Ciúmes? Nãããooo. Acho que até eu ia entrar também”

 

Márcio agora dormia. Que bom.  Parecia que estava tendo um sonho agradável. Pois estava sorrindo enquanto cochilava. Acho que ele não iria gostar de saber do que se seguiu, quando Vanessa deslizou pelo chão, de quatro, com o copo de cerveja em uma de suas mãos, e foi de encontro às pernas de Karina, que agora estavam um pouco abertas. Plantou-se de cócoras, com os cotovelos dobrados sobre as cochas de Karina, e olhando para ela, disse: “Você duvida?”

“Isso é uma cantada?” Respondeu Karina, rindo e com os olhos divididos entre em mim e Vanessa.

“Não!”

“Você está mentindo, Vanessa! Mentindo! Você vai ter que tirar a sua roupa!”

“Como quiser!”

Vanessa, na posição que estava, colocou o copo sobre o centro de plástico, mas não sem antes dar-lhe um trago. Postou-se, agora em pé, em frente à Karina. O vestido que usava era feito de um tecido escuro e mole, contrastando com a pele. Mais de acordo com a noite que nos envolvia. Começou puxando o vestido debaixo para cima, dobrando-o entre seus dedos, revelando às coxas volumosas. As coxas que tanto amo. Que tantas vezes vi tremer; por onde depositava a minha boca e fazia correr minha língua.

Para surpresa de Karina, e para a minha, Vanessa estava sem nada por baixo do vestido. Os cabelos encaracolados de sua boceta, que se espalhavam também como ramagens esparsas até a virilha, projetavam um matagal denso e negro aos olhos perdidos de Karina e aos meus, à medida que o vestido subia enquanto afundávamos; sentados em nossas cadeiras. Vanessa não havia se depilado a meu pedido. E sempre que usava uma navalha, confessou-me, uma excitação percorria suas pernas até o abdômen.

Cada sexo também tem um campo gravitacional em atividade. Por isso, desde crianças, nos sentimos atraídos a olhar abaixo da cintura. Lembrei que sempre que olhava para o meio das pernas de Vanessa quando nua, uma espécie de comoção me demovia. Eu sempre vi a boceta como um mistério insondável. Delicioso e insondável.

O vestido seguia revelando agora a barriga, seus sinais, sardas, o pequeno corte de uma cicatriz, chegando até os seios volumosos. Os bicos, que jaziam duros compostos de uma auréola larga, pareciam entregar-nos justamente a sua função, que era a de saciar a sede. Foi nesse momento que Márcio, com um roncado alto, engasgado com o ar quente e espesso da sala, despertou de seu sono, ao mesmo tempo em que Vanessa descia rapidamente o vestido. Márcio ficou esfregando os olhos. A testa estava úmida. Esteve sonhando com uma torrente de águas agitadas.

Penso que a forma de relacionamento com o corpo nos diz muito sobre uma época. Das casas de prostituição romanas, sempre próximas a carnificinas dos coliseus, ao medo e podridão da idade média. Hoje, orgulhosos, exibimos ao mundo nossos corpos. Como carne exposta em um açougue.

“Você me trapaceou, Karina! Você me fez duas perguntas. Agora eu é que te peguei” Respondeu Vanessa de uma forma pueril, com o indicador apontado para Karina.

No final, todos nós ficamos sem entender nada do que estava acontecendo. Até mesmo Márcio.

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[1] Texto extraído do livro “Carne Rubra” (ainda no prelo).