Sem a intenção de fazer coro ao besteirol dito por Slavoj Zizek, ao invés de desejar a vitória de um louco como Trump, me parece mais reflexível se perguntar pelo o porquê da crescente ascensão de Donald Trump na política estadunidense. Fenômeno político, creio, que deve ser comparado com a também crescente ascensão dos políticos de extrema direita na Europa. Trump, assim como aqueles políticos europeus, mobiliza os códigos simbólicos do nacionalismo, em particular, uma narrativa de justificação plausível (o que não é mesmo que verdadeira) para a situação de vulnerabilidade social de segmentos populares nos EUA.
Teria sido o sociólogo Richard Sennett, quem, acredito eu, descreveu de modo detalhado a “estrutura de personalidade” autoritária do eleitorado de Donald Trump, quase 17 anos antes desse eleitorado ganhar a representatividade que tem hoje na política estadunidense. Em seu clássico estudo The Corrosion of Character* (“Corrosão do Caráter”), Sennett procurava entender em escala microssocial as consequências (emocionais) das transformações institucionais do capitalismo, particularmente que tipo de personalidade se constituía com a emergência do chamado capitalismo pós-fordista ou “flexível”. O que os inúmeros “retratos” de história de vida de trabalhadores (profissionais qualificados e semi-qualificados que perderam seus empregos) mostravam era a constituição de pessoas com má-consciência, sentimentos de ressentimento e até xenofobia. Na falta de uma articulação mais elaborada para os problemas enfrentados com as mudanças do regime flexível de organização do trabalho, não eram poucas as pessoas desempregadas que responsabilizavam, dentre outras coisas, a fuga das empresas para países com mão de obra mais barata; a entrada de multinacionais orientais nos EUA, com seus novos e complexos programas de administração da produção e do trabalho; e, claro, a crescente presença de trabalhadores imigrantes que topavam realizar o mesmo trabalho em condições de precariedade e subalternidade que o homem branco estadunidense “nativo” não encarava. Essas mudanças institucionais, como é sabido, não resultaram em melhores condições de vida para os segmentos populares da sociedade estadunidense. Pior, o país vive na última década um aumento da desigualdade e da pobreza, chegando a índices semelhantes ao período da chamada “Grande Depressão”, na primeira década do século XX.
Na Europa, desde a década de 1990, o cenário também não parece muito distinto do encontrado nos EUA. Com a consolidação do “novo espírito do capitalismo” e sua retórica da nova gestão administrativa, países como a França assistiram também a um processo de crescente precariedade do trabalho e aumento do desemprego, acompanhado da emergência da “nova” pobreza e da explosão dos indicadores de “anomia” (suicídio, desestruturação familiar, depressão, surgimento de doenças emocionais associadas ao trabalho), conforme atestam pesquisas desenvolvidas por sociólogos (Boltanski e Chiapello)** e psicólogos (Dejours*** e Gaulejac****).
Com efeito, assim como ocorreu na primeira década do século XX, mais uma vez o liberalismo econômico se mostra incompetente na gestão da questão social e insiste na velha fórmula da política de austeridade. Negligenciando a fratura no tecido social provocada pelo recuo dos dispositivos institucionais de proteção social, governos liberais investem em políticas econômicas com resultados pífios em matéria de bem-estar coletivo. E é no déficit do liberalismo econômico em desenvolver uma engenharia social capaz de lidar a questão social que cresce a opção pelo nacionalismo autoritário. Em sua maioria de direita, políticos e partidos nacionalistas tendem a ganhar corpo na esfera pública. Nos EUA, vem a ser Trump quem melhor canaliza os sentimentos de frustração e expectativas de mudanças daqueles segmentos de homens brancos que se encontram atualmente em situação de miséria. Na Alemanha, é Frauk Petry e seu partido ultra-nacionalista que ganham gradativamente as mentes e corações dos trabalhadores e trabalhadoras alemãs. Na França, Marine Le Pen faz a cabeça da juventude francesa. Finalmente, na Inglaterra, o Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP) se consolida como a principal força política.
Foi dito por alguns jornalistas e analistas que todos esses nomes da “nova direita” se caracterizam não somente pela adesão ao nacionalismo, mas também pelo total desprezo aos valores liberais. De fato, estou de acordo com essa interpretação sobre o espírito anti-liberal da nova direita nacionalista. Porém, fico me questionando também em que medida a nova configuração do capitalismo e as políticas de austeridade de governos liberais não contribuem para solapar os mesmos ideais liberais de autorrealização pessoal. Afinal, a liberdade de oportunidade, um importante componente do liberalismo, enquanto “experiência vivida”, tem sido minada sistematicamente pela nova configuração do capitalismo. Ora, se a imagem dos EUA como “terra das oportunidades” não encontra mais confirmação empírica generalizada na atualidade, é compreensível que uma massa de desempregados e aposentados encontrem na pessoa de Donald Trump o “profeta exemplar” daquele componente do liberalismo que parece ter sido perdido pela política do establishment atual. Não por acaso, Trump é enxergado como o candidato “anti-establishment“, o que explicaria também as dificuldades de Hillary Clinton em competir eleitoralmente com um candidato republicano tão medíocre politicamente. No atual contexto social de escassez de realização “material” da liberdade de oportunidades, Trump não precisa defender todos os valores liberais e nem se mostrar um político hábil. Basta a ele apenas defender o sonho americano de autorrealização pela via da liberdade de oportunidades. Pode não vencer uma eleição, mas, com certeza, vai ampliar o forte mal-estar com o neoliberalismo que já existe.
Economistas neoliberais adoram dizer que a “esquerda” não entende de economia. A esquerda devolve e diz que os economistas neoliberais entendem menos ainda da questão social. Enquanto os dois grupos trocam acusações, a direita ultranacionalista e fascista cresce de braçada na geopolítica internacional. Deve ser por isso que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso alertou o seu PSDB para a necessidade urgente de reinserir a práxi do “s” (“social”) na política do partido. Ainda em seus raros momentos de lucidez política, parece ter sentido o cheiro de enxofre se alastrando também na política brasileira.
* Ver Sennett. A corrosão do caráter. São Paulo, Editora Record, 2005.
** Ver Boltanski, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo, Martins Fontes, 2009.
*** Ver Dejours. Uma nova visão do sofrimento humano nas organizações. O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. São Paulo: Atlas, 1993.
**** Ver GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2007.