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BRASIL: A REPÚBLICA DOS NÃO-REPUBLICANOS

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Por Stanley Medeiros

O Brasil de 2016 está em crise, é verdade. Mas que tipo de crise? Uma crise econômica? Política? Uma crise de valores? Uma crise na educação, na saúde, na segurança? Ou talvez uma crise existencial? Ou tudo isso junto? Na verdade, talvez alguém se sinta inclinado a dizer que o Brasil é, praticamente, o país de todas as crises possíveis de que se possa imaginar. Principalmente agora que, ao que parece, a ideia de crise parece ter virado moda para uma nova classe de indivíduos “extremamente interessados” nos assuntos políticos de nosso país. Isso nos leva à seguinte pergunta: seria esse um novo movimento de brasileiros educados, politizados, eticamente responsáveis e interessados no bem comum e no fortalecimento de nossa tão sonhada república do futuro? Em outras palavras: seria esse um movimento republicano? A isso respondo: não creio.

Assumindo que não existe neutralidade ideológica quando se discute assuntos políticos mas, ao mesmo tempo, assumindo também meu interesse no diálogo fundamentado na razão e pautado na ética, gostaria de abordar essa questão de uma perspectiva republicana e, portanto, conciliadora.

O Brasil é uma república. Isso significa que todos os seus cidadãos têm parte e interesse em sua manutenção, assim como direitos e responsabilidades para com ela. Ainda que cada indivíduo tenha seus próprios interesses e aja de acordo com eles; ainda que diferentes grupos ou classes sociais também ajam de acordo com seus próprios interesses; ainda que esses interesses sejam, muitas vezes, conflitantes; a nenhum indivíduo ou grupo – incluindo a classe política e jurídica – é dado o direito de adotar ações que desestabilizem ou até mesmo inviabilizem a continuação dessa república. Infelizmente, no Brasil atual, a desestabilização da república parece ser exatamente o que está acontecendo.

Uma república pode ser ameaçada de várias maneiras. Não cabe a esse pequeno ensaio descrever ou investigar todas elas. Entretanto, considerando a questão de forma abstrata – tal como se espera de um filósofo –, eu diria que a república brasileira – isto é, essa de 2016 – está ameaçada por um conjunto de ações que considero anti-republicanas. O que seria, então, uma ação anti-republicana? Entendo uma ação anti-republicana como aquela que atenta contra a república, isto é, que atenta contra uma entidade estabelecida por um pacto social e que visa o interesse comum – e que define, em seu texto constitucional, a extensão e os pormenores desse pacto. Em contraste, um indivíduo republicano age em prol de sua república, isto é, em prol do pacto republicano ao qual está submetido, ciente dos detalhes deste pacto e capaz de fazer acordos com outros indivíduos ou grupos, no intuito de mantê-lo.

Um verdadeiro republicano – concedam-me esse artifício retórico – é um indivíduo politizado. Um indivíduo politizado, por sua vez, é aquele que se interessa e participa ativamente da vida política de seu país. Obviamente, essa participação não se resume a votar em eleições. Vale ressaltar, também, que não existe uma conexão necessária entre se filiar a um partido político, fazer campanha por ele (ou por uma pessoa), participar de movimentos sociais e ser um indivíduo politizado. Por que não? Porque, assim sustento, um indivíduo verdadeiramente politizado é, necessariamente, um indivíduo bem educado.

Eu sei. Essa afirmação pode parecer elitista, mas não é. E a razão de não o ser é que, em nossa república, a educação pública e de qualidade deveria ser um direito de todos. A assim o defendo: a politização deveria ser garantida por uma boa educação pública que, por ser pública, deveria estar acessível a todos. Infelizmente, como sabemos, o direito a uma educação pública encontra-se atualmente ameaçado. E essa ameaça cobrará seu alto preço no futuro.

Não é possível ser um indivíduo bem educado sem uma formação geral acerca das mais variadas ciências, culturas e artes desenvolvidas pela espécie humana, ao longo de sua história. Em outras palavras: um indivíduo verdadeiramente politizado, assim sustento, tem à sua disposição toda uma carga teórica, conceitual e filosófica de conhecimentos que, por sua vez, são aplicados na identificação, compreensão e resolução de problemas – sejam eles científicos, tecnológicos, econômicos, sociais, filosóficos etc.

Um indivíduo politizado não é só apenas um indivíduo interessado nos assuntos políticos de seu país, ou bem educado nos termos anteriormente mencionados: ele também tem interesse em exercer, de forma responsável, a arte da política – e também tem plena consciência de quando a está exercendo. Mas o que isso significa? Isso por acaso quer dizer que ele deve entrar para a vida pública? Ou que deve virar militante deste ou daquele partido? A isso respondo: não necessariamente.

A arte política nasce da necessidade de articulação e acomodação de interesses conflitantes. Enquanto arte ou disciplina de estudo, é verdade, tem local e data relativamente bem definidos: a Antiga Grécia do século V a.C. Entretanto, as ações políticas já se manifestam no núcleo familiar, sendo expandidas – ou talvez reproduzidas – nas esferas mais amplas da sociedade. Deste modo, o irmão que media a disputa entre outros irmãos, em uma questão de herança, pratica um ato político – ao menos nesse sentido amplo de política, isto é, da articulação e acomodação de interesses conflitantes. Similarmente, embaixadores, quando mediadores de questões internacionais entre as nações e tendo como objetivo a resolução de uma disputa, também praticam um ato político.
Nos dois casos, portanto, temos exemplos de atos políticos. Sendo que o primeiro caso é, certamente, diferente do segundo: além de praticado numa esfera familiar e, portanto, privada, não envolve necessariamente a auto-consciência do ato praticado como algo político. No segundo caso, se não houver tal consciência, há, pelo menos, a obrigatoriedade moral de tal consciência – isto é, a obrigatoriedade moral de que o agente saiba que o que pratica é, por excelência, um ato político. Assim sendo, um agente que pratica um ato político pode ser considerado politizado na medida em que tem plena consciência de que: (i) pratica um ato político e (ii) satisfaz a obrigação moral de ter plena consciência de que pratica um ato político – além, é claro, de satisfazer os requisitos anteriores no que diz respeito à educação. Dessa forma, entendemos que aí reside a diferença entre um mero ato político e um ato politizado: a plena consciência do agente em relação ao seu ato e suas obrigações morais perante a consciência da realização de tal ato.
Seguindo o raciocínio, temos o seguinte: o verdadeiro republicano é aquele indivíduo que possui uma formação geral de qualidade, que age com plena consciência dos atos políticos que pratica, que está consciente de suas obrigações morais no que concerne às ações políticas, que age visando o bem e a manutenção de sua república, respeitando o pacto nela estabelecido (em todos os seus pormenores) e visando a paz e o bem comum.
Aí está implícita, creio eu, a questão do patriotismo. É certo que os Estados totalitários, ultra-nacionalistas e fascistas exaltam o amor à pátria de uma forma deliberadamente projetada para excluir ou expurgar qualquer possibilidade de dissidência política. Entretanto, o sentimento honesto de pertinência e amor à própria pátria não implica, necessariamente, nesse tipo de perspectiva extrema. Afinal, o próprio Artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos garante a todos os cidadãos o direito à nacionalidade. Nisso vejo um grande potencial aproximador: o sentimento de pertinência e amor a uma mesma nação, representada na figura de uma república, tem o poder de amenizar disputas, aproximar os cidadãos de inclinações republicanas, que estão efetivamente interessados no bem comum e na felicidade de todos aqueles que compõem a república. Portanto, sustento que, para ser um verdadeiro patriota, o cidadão também precisa ser um verdadeiro republicano.
Como consequência, um patriota – sendo também um verdadeiro republicano – não pode agir politicamente visando apenas seus próprios interesses, ou os interesses de seu grupo. Ao contrário: ele deve aprender a acomodar os seus interesses particulares ou de grupo aos interesses particulares de outros, ou de outros grupos. Além disso, ele deve saber articular e acomodar seus interesses, bem como os interesses dos outros, aos interesses de sua república. Disso segue-se necessariamente que os atos de corrupção – como enriquecimento ilícito, por exemplo – são contrários ao bem comum e à república, sendo, portanto, anti-republicanos. O mesmo se aplica a qualquer outro ato que viole o pacto constitucional de uma república.
Tome-se, por exemplo, a questão da tolerância. O raciocínio aqui adotado sugere que, sendo um verdadeiro republicano, o indivíduo deve, por questão de princípio, ser também um indivíduo tolerante. O ato de atacar politicamente, seja verbal ou fisicamente, um compatriota sem que ele tenha violado quaisquer dos elementos constitutivos do pacto republicano é, em si, um ato anti-republicano – principalmente quando tal república garante a todos os seus cidadãos direitos sobre suas vidas, suas reputações, suas integridades física e psicológica. Deste modo, um indivíduo que não pratica a tolerância – especialmente no âmbito de uma república que a exige – é, por conseguinte, um indivíduo que pratica um ato anti-republicano.

Outra interessante característica do indivíduo republicano: ele é epistemicamente humilde. O que significa, então, ser “epistemicamente humilde”? Respondo: significa reconhecer que nenhum indivíduo ou grupo é detentor de um conhecimento infalível. Ou seja, nenhum é detentor da verdade; nenhum está em posição de privilégio epistêmico absoluto. Assim sendo, um indivíduo de disposições verdadeiramente republicanas reconhece sua falibilidade e, consequentemente, não impõe suas opiniões ou concepções aos demais indivíduos. Ao contrário: está disposto a debater suas ideias num plano racional, a fazer concessões epistemológicas, a entrar em acordo com outros que pensam de forma diferente.
Deste modo, em um contexto político, todo indivíduo que tenta impor sua visão de mundo ou que julga conhecer, sozinho, uma verdade universal que deve ser aceita por todos, pratica, nessa perspectiva, um ato anti-republicano. Nisso reside minha admiração pela ciência moderna: tendo o “ceticismo moderado” como um de seus valores mais caros, age com cautela epistêmica e reconhece sempre a possibilidade de equívocos no processo de formação de hipóteses. Por conseguinte, reconhece, sempre, a possibilidade de que o outro esteja certo; assim, está disposta a acomodar – a até incorporar – novos modos de “ver” o mundo.
Assim como há falibilidade em tudo aquilo em que acreditamos, há, também, falibilidade em tudo aquilo que criamos. Ora, entendendo uma república não na perspectiva aristotélica – isto é, como algo natural –, mas como algo artificialmente construído pelos seres humanos e para seu benefício, é forçoso admitir que a própria república é falível. Deste modo, se é falível, é passível de receber ajustes, isto é, melhorias que garantam e maximizem seu próprio funcionamento. Um verdadeiro republicano reconhece isso e, por ser educado, politizado, tolerante e epistemicamente humilde, está disposto a receber e acatar sugestões de outros indivíduos; além disso, é claro, o verdadeiro republicano exerce sua liberdade positiva: pois, como mencionado, participa ativamente da vida política de seu país.
Mas essa participação, sendo verdadeiramente republicana, deve conter os seguintes elementos:

  1. Ser eticamente responsável, já que esse indivíduo tem consciência de sua liberdade na hora da ação, bem como das consequências dos atos políticos que pratica.
  2. Ser politizada, já que esse indivíduo tem plena consciência dos atos políticos que pratica, bem como da ideia de que aquilo que pratica são atos políticos.

III. Ser educada, isto é, pautada num conhecimento geral e em informações confiáveis; ser pautada em evidências.

  1. Ser patriota, na medida em que respeita os interesses nacionais e reflete seu amor pela pátria.
  2. Ser tolerante, na medida em que reconhece os direitos dos outros de pensarem, bem como agirem, nos limites estabelecidos para seus interesses e para os interesses da república.
  3. Ser epistemicamente humilde, pois reconhece a falibilidade tanto das crenças humanas quanto de suas criações.

Agora, considerando o que foi exposto, pergunto: somos uma república cujos cidadãos que participam da vida política observam todos esses elementos? É possível dizer, de modo geral, que somos cidadãos eticamente responsáveis, politizados, educados, patriotas, tolerantes e epistemicamente humildes? Somos um povo com uma disposição para o debate racional de nossas ideias e convicções? Respeitamos as diversas visões de mundo de todos os indivíduos que fazem parte da nossa república? No caso de estarmos em lados ou espectros políticos  opostos, estamos dispostos a negociar, a ceder, a marchar juntos pelo bem da república, numa causa comum?
Se a resposta para todas essas perguntas for “não”, então, podemos tirar a seguinte conclusão: somos uma república repleta de indivíduos não-republicanos. Talvez essa seja a verdadeira crise que assola nosso país: a ausência de um sentimento republicano em nossa nação, sentimento este que, de fato, talvez nunca tenhamos tido – enquanto grupo, pelo menos. Somado a esse problema temos, talvez, um contexto econômico, político e social que não favorece o cultivo de tal sentimento. Aonde isso irá nos levar, só o futuro dirá (mas não creio que seja a algo de bom).