“Então eu me sinto feliz,
e todas as estrelas riem docemente”.
O pequeno príncipe.
Acordei por volta das nove horas, numa manhã vulgar e sem sonhos; bem longe da vigília que havia me prometido, que duraria até antes do sol nascer. O céu estava claro na noite anterior, sem nuvens ou indicativos de chuva. Eu tinha um bom ponto de observação, com poucas luzes, e sabia de suas coordenadas; algo próximo à constelação de Orion. A simples notícia que tinha lido em um jornal, de que haveria uma chuva de meteoros trouxe-me uma agitação e um gosto proustiano de Madeleine[1]. Mas mal caia a noite, e pensava “Que tipo de homem fica até as quatro da madrugada em busca de estrelas cadentes?”.
Uma chuva de meteoros, ou estrelas cadentes, segundos os especialistas, é o resultado da relação entre um planeta e os rastros produzidos por um cometa. O fenômeno nem é algo muito raro assim. Porém, os detritos produzidos nesta quinta-feira, dia 20 de outubro, Os orionídeos, ainda são resultados da última passagem do cometa Halley aqui na terra. Este sim, um visitante raro.
A última vez que o tal cometa passou por essas bandas foi em 1986. Ainda lembro bem. Houve uma massiva campanha de marketing com direito a personagens de HQ´s, musiquinha em LP, copos descartáveis, camisas estampadas com marca registradas do Halley, etc. (Exagero? A próxima passagem do Halley, ainda segundo os especialistas, deverá ocorrer em julho de 2061. Porque só se repete apenas a cada 75,3 anos.) E a última vez que tive a oportunidade de quase acompanhar outra chuva de meteoros foi em 1990. Eu tinha treze anos.
Éramos três ou quatro moleques, mais ou menos da mesma idade, quando soubemos da grande notícia através de um amigo. O Carlinhos. Carlinhos, assim como o cometa Halley, era um fenômeno raro e sedutor.
Observando hoje, posso dizer que todos nós à época tivemos alguma influência de um pai, de uma irmã ou irmão mais velho. Partíamos todos de um pressuposto para sermos quem éramos. Mas essa lógica parecia não se aplicar em seu caso. Ou quantas crianças você vê por aí, enterrando seus bonecos na areia, só para acompanhar o processo de decomposição da matéria? Talvez só Sheldon Cooper…
Foi assim, quase sem querer, que Carlinhos conseguiu chamar a minha atenção. Primeiro com o seu tipo esquisito, de corpo franzino e olhar esbugalhados de cientista maluco. Depois, acabando com o meu sonho de um dia ser um “grande” jogador de futebol igual ao Zico (Mas eu até o perdoo. Minha carreira estava mesmo fadada ao fracasso, haja vista que eu só levava “banco” e o treinador só me colocava para jogar quando o nosso time estava perdendo de goleada. Dessa forma a minha presença não teria relevância diante do resultado. Eu sempre serei um looser.). Arrebatado por suas ideias, aos poucos, e sem perceber, ia me afastando dos garotos da rua Ibiara, das peladas de todos os dias. Paguei caro por isso. Os garotos da rua Ibiara ( hoje homens feito) nunca mais me dirigiram a palavra. Ainda bem.
Troquei toda uma geração de heróis anabolizados e inexpressivos dos anos oitenta, por antropólogos que se aventuram atrás de tesouros de civilizações antigas; séries e enlatados teens, por naves espaciais que singravam o espaço em busca de novas formas de vidas, novas civilizações. Aprendi a ver no xadrez, além das aberturas, o contexto histórico do jogo. As intrigas de Karpov e Kasparov. O gênio louco de Bob Fischer! Vi as luzes acesas no meu quintal, quando soube que o piloto Saint-Exupéry veio a nossa cidade na década de 20, e ficou maravilhado com uma árvore enorme e frondosa chamada Baobá. Quando Mussolini nos presenteou com uma das colunas do templo do júpiter, em gratidão por nossa boa acolhida.
Por que vocês querem ser adultos? Sempre nos alertava Carlinhos, a quem apelidamos de Peter Pan.
Em nosso rol de aventuras, já havíamos feitos longas caminhadas a pé da Cidade da Esperança até os sebos no Centro de Natal. Acampamos no pico do Cabugi (essa eu não estive lá). Projetamos foguetes (O Moonshadow I) e bumerangs.
Como ocorreu agora, sabíamos que o hemisfério sul seria o ponto mais privilegiado. Então decidimos que o melhor local seria uma praia; (escolhemos Ponta Negra) pela pouca iluminação e pelo mister da aventura de passarmos uma madrugada juntos. E para quem já havia feito tudo o que já havíamos feito observar uma chuva de meteoros de madrugada, em uma praia, não seria nada de fora de nossa realidade, certo?
O plano estava traçado. O dinheiro para a passagem, que nunca tínhamos, não seria problema, já que poderíamos chegar lá de carona. Mas ainda havia um obstáculo. No meu caso, o maior de todos; meu pai.
Na nossa turma, o que percebi só tempos depois, era que somente eu tinha um pai. Nunca vi nem no olhar, nem nas atitudes de meus amigos, algo que demonstrasse essa falta. Simplesmente eles não falavam. Eles nunca falavam.
Para mim, a “virtude” de ter um pai funcionava mais como um fator de repressão e estupidez. Era algo como “é o que se tem para hoje”.
E assim, como acontecia na maioria das vezes, desisti antes mesmo de tentar, pois já sabia de sua resposta. Receberia um NÃO antes mesmo que tivesse tempo de articular algo em minha defesa. E o aceitaria. Com respeito, desgosto e tristeza. Exatamente como na maioria das vezes. Meu pai me dava medo.
Então, fiz a única coisa que poderia fazer. Fui até a cama. Peguei no sono.
Quando encontrei com meus amigos, no outro dia, eles me falaram como havia sido aquela noite.
A madrugada estava escura. Era quase manhã. Todos estavam na areia. Alguns deitados, outros sentados, conversando bobagens, quando, de repente, fachos incandescentes riscavam o céu…
Não sei dizer se foi aquilo tudo aquilo que relataram, ou se quiseram me dar uma sacaneada. Mas é provável que tenha sido. Eu nunca vou saber. Talvez um dia. E eu pensei até que fosse ontem à noite. Mas de repente, você abre os olhos e tem trinta e oito anos. Sua filha chora com um dente que está para nascer. Alguém que lhe ama cobra sua atenção. Há uma pedra, que desce todos os dias, e que você terá que carrega-la até o topo, até que ela volte a descer. E então você pensa “Que tipo de homem fica até as quatro da madrugada em busca de estrelas cadentes?”, e você vai para cama, e faz a única coisa que poderia fazer.
“As estrelas que vemos, não são mais as mesmas estrelas. São eventos do passado. Algumas até já morreram. A imagem que chega até nós, percorrendo grandes distâncias, é o tempo que a luz percorre essas distâncias…”.
Foi à última coisa que aprendi.
Por isso (eu acredito) que em algum lugar, num planeta pequeno, muito pequeno, um garotinho (O único habitante desse planeta, além de sua rosa) vê em seu telescópio, um grupo de outros garotos observando estrelas. Sim, ele os vê. Assim como eu vejo.
Dedico ao dr. Francisco Carlos de Menezes Júnior, “o Carlinhos”.
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[1] * bolinho assado, que tem um formato de concha, geralmente imerso em chá; fator que desencadeia toda uma sucessão de memórias do personagem narrador de “Em busca do tempo perdido” (1913), obra do escritor francês, Marcel Proust (1871-1922).