No Brasil, quando se fala em corporativismo, com frequência, é no sentido exclusivamente negativo. Imaginamos logo um grupo de interesse que se encontra na “elite” profissional e que atua politicamente de maneira “egoísta”, sobrepondo aos interesses de bem comum os seus interesses corporativos particulares. Porém, para muitos sociólogos, o corporativismo pode ser entendido também como uma forma de organização regular da vida associativa de modo a defender demandas de justiça de grupos sociais vulneráveis em meio a mudanças estruturais nas instituições da sociedade.
Èmile Durkheim, que considerava as associações ocupacionais como as principais formas organizacionais “intermediárias” entre Estado e indivíduo nas sociedades modernas, defendia que as corporações profissionais seriam os principais agentes de proteção e resistência institucional contra as tendências “anômicas” da economia de mercado. Descrente com a possibilidade de generalização de uma “consciência coletiva” de classe em meio ao “culto do individualismo” (espécie de “religião secular” da modernidade), Durkheim acreditava ser mais plausível a constituição de formas localizadas e diferenciadas de “solidariedade” que ligariam indivíduos a subgrupos locais, contrabalanceando os efeitos (“negativos”) do individualismo moral.
No Brasil, como em qualquer outra sociedade democrática liberal, esse mesmo corporativismo profissional pode ser encontrado em diferentes grupos especializados da esfera do trabalho, seja nas atividades estatais, seja na iniciativa privada. Porém, a capacidade e alcance da agência é bastante diferenciada entre os diferentes grupos corporativos. Com efeito, a distribuição do ônus com mudanças institucionais são sempre desiguais e pouco republicanas. No caso particular dos profissionais de educação no Brasil, além de acumularem sucessivas derrotas no campo dos direitos, ainda são acusados de “corporativistas” sem de fato serem objetivamente, pelo menos, na mesma proporção que outras categorias profissionais do país. Em comparação com profissionais do judiciário, profissionais de segurança pública, associações médicas, corporações empresariais, trabalhadores do setor bancário, chega a ser tragicômica a lembrança dos profissionais de educação quando se fala em corporativismo profissional. Para compreender o estado atual de coisas, ainda que concordemos com o forte desequilíbrio de poder entre os diferentes grupos corporativos, é preciso destacar também uma incompetência generalizada nos modos de ação sindical dos profissionais da educação do país. Como dizem alguns amigos em tom de sarcasmo, participar de uma assembleia sindical dos profissionais de educação no país é quase sempre como se viajássemos de volta ao século XIX, no exato momento de uma potencial revolução social. Homens e mulheres com muita retórica apocalíptica, pouca racionalidade e estratégia de ação coletiva. Ao final de cada reunião, saímos mais desanimados e ressentidos com o mundo do que realmente engajados e comprometidos com causas concretas. Pior, não construir seque um sentimento de comunidade nesses encontros sindicais.
Verdade seja dita, há sim uma parcela de responsabilidade também no modo de atuação do movimento sindical. Não raro quem acompanha assembleias sindicais, fica com a impressão de que as lideranças sindicais são constituídas pelos piores quadros de profissionais das instituições de ensino e que seus porta-vozes falam mais em nome dos partidos políticos vinculados do que em nome da categoria própria profissional. Chega a ser comum, entre os sindicalizados, afirmações do tipo, sindicato A “pertence” ao comando do partido X, e sindicato B, por sua vez, pertence ao comando do partido Y. Melhor seria se existisse um único sindicato forte e que tivesse autonomia partidária, assim como inserção em vários partidos políticos. Mas não, nossos sindicatos parecem muito mais extensões dos interesses de determinados partidos políticos do que propriamente dos interesses corporativos. E aqui, mais uma vez, retomo o argumento de Durkheim sobre a necessidade de diferenciação interna também dos grupos de interesses.
Chega a ser irônico e trágico que, por exemplo, um professor do IFRN e uma professora da rede estadual de ensino não sejam capazes de serem eleitos pela ação dos próprios profissionais de educação. Em contraste, independente do partido político, profissionais de segurança pública, associações de médicos, ruralistas e evangélicos votam em bloco em candidaturas “hard” que representam seus interesses corporativos. Chegam a fazer cálculos com a previsão do número de candidaturas que desejam lançar pelos mais diversos partidos políticos, independente do espectro ideológico. E mais, uma vez eleitos, seus quadros partidários falam e agem no parlamento como verdadeiros guardiões de seus interesses corporativos.
Sim, os profissionais de educação precisam aprender com os ruralistas e os evangélicos, e constituir uma bancada nos níveis municipal, estadual e federal somente com parlamentares comprometidos com seus interesses. É isso o que também tem feito as corporações empresariais e do comercio de armas, formando verdadeiras bancadas suprapartidárias e com elevado poder de negociação e pressão nas casas legislativas. Da mesma maneira, os profissionais de segurança pública ampliam sua inserção nas casas legislativas do país.
Mais uma vez, como exemplo, é impressionante que dada a totalidade populacional de profissionais da educação pública no RN, não exista uma bancada parlamentar constituída na Assembleia Estadual do RN formada exclusivamente para defender interesses das corporações profissionais da educação pública. Somado os profissionais do IFRN e da UERN, seria possível eleger pelo menos 2 ou mais deputados estaduais e 1 deputado federal. No entanto, hoje não temos nem uma bancada, nem muito menos um parlamentar que seja um representante “hard” dos interesses corporativos dos profissionais de educação. Temos no máximo, políticos, que embora sensíveis às demandas da educação, se reconhecem muitos mais como representantes de determinado partido político do que dos trabalhadores de educação. O mesmo pode ser dito em relação a Câmara Municipal de Natal. Como “educadores”, somos um fracasso como formadores de uma opinião pública a nosso favor.
Ou os sindicatos dos trabalhadores da rede pública de educação (professores e agentes administrativos) repensam suas estratégias de ação coletiva ou vão ser devorados pela força dos acontecimentos. Não basta apostar em longas greves com eficácia muitas vezes nula. É preciso também fortalecer o espírito de corpo, extrair vários candidatos da corporação profissional e atuar em bloco na eleição de seus representantes políticos. Mais, seguir o exemplo dos pastores evangélicos e empresários e desenvolver críticas e denuncias focalizadas em determinados políticos “inimigos” da educação pública. Somente assim, será possível formar uma resistência eficaz contra os recuos de seus direitos constitucionais.
Finalmente, convém lembrar que os profissionais de educação vivem atualmente momentos de grande frustração de expectativas e angustia profissional. Com razão, diante das violências institucionais contra a categoria profissional, é compreensível um despertar de sentimentos generalizados de impotência, ressentimento e má consciência. Mas também é importante o despertar para o aprendizado moral coletivo. Não é possível sustentar mais as velhas práticas sindicais e de agência coletiva. O movimento sindical no Brasil precisa se renovar rapidamente, a começar pela maneira como se relaciona com a esfera pública nacional e, sobretudo, consigo mesmo. Precisa urgentemente deixar de ser um satélite de partidos políticos e construir uma relação mais simétrica com as diferentes organizações partidárias. Com efeito, os sindicalistas devem trocar a camisa do partido político pela camisa da corporação profissional. E devem criar redes comunitárias de solidariedade com os seus membros da categoria profissional. Chegar aos filiados e dizer claramente; “pouco importa sua religião ou visão ideológica de mundo; aqui, em nossa comunidade profissional, você é nosso parceiro/parceira e, portanto, estamos ao seu lado em suas demandas como membro da comunidade”. O sociólogo alemão Max Weber costumava destacar que, independente da posição ideológica ou classe social, a confissão religiosa tinha um sobrepeso na dinâmica de solidariedade interpessoal de determinados grupos sociais. Durkheim, ao seu modo, também enxergava nas corporações profissionais uma versão secular das comunidades de solidariedade. Para isso, defendia o corporativismo profissional. Talvez seja a hora nos inspirarmos um pouco mais nos ensinamentos desses dois e menos em Lenin.