Com frequência, quando tematizamos os movimentos sociais, tomamos as experiências européias como grade de referência empírica de nossas reflexões. Raramente nos lembramos das experiências de ação coletiva nos EUA. Considerando apenas o registro empírico das formas de ação coletiva nas sociedades européias, parece compreensível os diagnósticos negativos de homens como Freud e Adorno acerca da “irracionalidade” inscrita nos movimentos sociais. Porém, no outro lado do Atlântico, precisamente no Atlântico Norte, as referências empíricas parecem ser mais encorajadoras para os defensores dos movimentos sociais. Talvez movidos por uma certa antipatia intelectual com tudo que vem dos EUA, ignoramos a história bem sucedida de lutas dos movimentos sociais naquela sociedade. Se é verdade que os EUA não oferecem bons exemplos de lutas sociais do movimento operário, se comparado ao contexto europeu, também é verdade que os EUA se destacam no ativismo dos chamados “novos” movimentos sociais (principalmente os movimentos feminista e negro).
Um aspecto interessante nos movimentos sociais estadunidenses que contrasta com os movimentos sociais europeus é a compreensão dos primeiros em relação a luta estratégica pela institucionalização de seus ideais na forma de direitos constitucionais. Nos EUA, como bem demonstrado por um sociólogo liberal como Talcott Parsons, os movimentos sociais sempre foram bem sucedidos em suas lutas sociais, seja porque lutavam pela “tradução” legal de suas demandas de justiça e reconhecimento, seja porque foram capazes de demonstrar a legitimidade pública de seus ideais. O movimento negro, por exemplo, além das monumentais passeatas públicas, praticava um intenso ativismo político nos campos das mídias e do judiciário. Seus ativistas procuravam conhecer cirurgicamente o sistema de valores da sociedade estadunidense e como esses valores se encontravam materializados nas leis civis. Em consequência disso, demonstravam que suas demandas de reconhecimento eram nada mais que a cobrança prática de exigências normativas inscritas nas próprias instituições ou no sistema de valores compartilhado coletivamente pela comunidade societal. Se seus ideais não encontravam correspondência no sistema de leis, eram necessárias reformas institucionais. E o argumento de justificação mais mobilizado para tais reformas era a exigência normativa de liberdade, que assumiria novas formas sociais, a exemplo da liberdade de construção e afirmação da diversidade de modos de ser e viver. Longe de qualquer pulsão espontaneista, os movimentos sociais estadunidenses sempre procuraram apresentar e justificar racionalmente suas pautas de justiça junto a opinião pública.
Diferentemente dos novos movimentos sociais na Europa que se contentavam com a “liberdade” de experimentação estética da vida nos próprios atos de ativismo social, os movimentos sociais estadunidenses desejavam mais, aspiravam a reforma institucional de modo a incorporar suas experiências de liberdade. É bem verdade que na Europa algo similar ocorreu com os movimentos operários do século XIX, que ao conquistarem o direito de participação política nos parlamentos legislativos, trataram de criar leis que ampliavam e consolidavam direitos civis e sociais para as classes trabalhadoras. Fato histórico não previsto pela literatura marxista, resumida em enxergar somente a natureza “conservadora” das instituições políticas e jurídicas. Mas essa preocupação com a institucionalização dos ideais de bem viver foi deixado de lado pelos novos movimentos sociais europeus da segunda metade do século XX, com exceção do movimento ecológico europeu. Pior, se disseminou na tradição europeia dos novos movimentos sociais uma narrativa de negação absoluta das instituições modernas. Alimentados por um romantismo anarquista, simplesmente rejeitaram o potencial libertador inscrito nas próprias instituições sociais. Chega a ser irônico que em pleno século XXI, os EUA ainda sejam a maior referência em matéria de ampliação dos direitos civis e fonte de inspiração das políticas de reconhecimento em curso atualmente em muitos países europeus.
Nesse sentido, um aspecto importante da luta coletiva é o trabalho de justificação e legitimação social da ação. Pensando a nossa própria realidade atual de lutas e mobilizações coletivas, os movimentos estudantis precisam considerar que suas demandas de justiça não são sempre autoevidentes para as comunidades societais (universitária e escolar). Para muitos dos membros dessas comunidades, a linguagem dos movimentos estudantis é estranha e até mesma problemática, em grande medida, alimentada pelos estigmas sociais em torno da ação coletiva. Daí porque a importância do trabalho de comunicação pública das demandas de justiça.
A importância da luta por legitimação da ação coletiva
Os movimentos estudantis precisam convencer a coletividade que suas exigências de justiça se apoiam nos mesmos ideais compartilhados dos demais membros da comunidade. Por exemplo, a defesa da universalidade do acesso gratuito à educação escolar não é um ideal de bem viver compartilhado somente por pessoas de esquerda, mas também por liberais comprometidos com o desenvolvimento da autonomia individual. Alias, John Stuart Mill, um representante clássico do liberalismo inglês, compreendia que a autorrealização subjetiva pressupõe o desenvolvimento dos “atributos, faculdades e sensibilidades”, mediante educação universal e diversidade de opiniões. Sim, Mill defendia que o Estado tinha obrigação “moral” ou civilizadora de fornecer as condições objetivas de desenvolvimento da autonomia individual. Além disso, não foram poucos os que enxergaram na educação pública um elevado bem de civilização. É um belo ideal que vale a luta coletiva.
Nesse sentido, talvez a juventude estudantil de esquerda da UFRN precise parar um pouco e refletir sobre suas ações políticas. Não se ganha legitimidade e adesão coletiva com base apenas no grito. Concretamente, precisam melhorar seu agir comunicativo, se deseja ganhar solidariedade em suas demandas de justiça social. A começar por melhor fundamentar seus argumentos, pois parece que encontraram rivais com bons argumentos conflitantes. Ao invés de recorrer ao uso da coerção da maioria numérica, poderiam seguir o exemplo de seus concorrentes e articular uma narrativa não-coercitiva de justificação da ação coletiva. E mais importante, sair da condição “reativa” e assumir um protagonismo “ativo”, no sentido de discutir publicamente sobre os ganhos civilizatórios da educação pública. Existem bons argumentos constitucionais em defesa da ocupação estudantil, a exemplo da exigência normativa de direito a uma educação escolar. E também existem bons argumentos liberais de justificação da ocupação, como por exemplo, a ausência de qualquer tipo de coerção externa ao pleno exercício da liberdade de autorrealização pessoal. Ora, a urgência material e educação precarizada são exemplos de obstáculos externos que inviabilizam a liberdade individual, ou pior, “estratificam” e torna “seletiva” a liberdade. Na década de 1990, eram raros os estudantes universitários oriundos camadas populares e de minorias ( negras e negros, indígenas). E a infraestrutura física de pesquisa e ensino era bem degradante. Enfim, a juventude estudantil pode e deve sair da zona de conforto e rearticular seus sentidos de justiça e dignidade de modo mais consistente.
Ser contra o “moralismo” não significa ser contra qualquer discurso de moralidade
Em tempos de discurso de “moralização”, convém também aos movimentos sociais explicitar suas próprias visões de moralidade e eticidade. Os jovens secundaristas e universitários precisam despertar paixões em torno de sua defesa. Verdade seja dita, as vozes conservadoras jogam e jogam bem com a incapacidade dos atuais movimentos de esquerda em articular uma narrativa de justiça fundamentada moralmente. Não que princípios de justiça sejam esvaziados de moralidade. De modo algum, parece mais plausível que os valores que orientam as lutas por justiça dos movimentos estudantis se encontrem inarticulados, “envergonhados”, quando deveriam se apresentar em primeiro plano. Afinal, por que devemos defender a educação universal e gratuita para todos os seres humanos? Respondam com paixão a essa pergunta e certamente ganharão as mentes e corações da população. Existem boas razões civilizatórias que justificam a universalidade da educação escolar. Ela não foi imposta arbitrariamente como muitas das ideologias do nosso dia dia, mas foi o resultado de consensos coletivos construídos após diversas lutas sociais por acesso ao saber escolar. Existe uma bela história de lutas e conquistas que precisa ser recontada. Histórias de generalização de valores que precisam ser resgatadas e rearticuladas discursivamente no presente. Para reencantar e atualizar os consensos morais em torno de quais bens de civilização não devemos abrir mão.