A universidade possui diversas responsabilidades e funções que a justificam como uma das mais importantes instituições de nossa civilização. Entre as menos compreendidas pelas instâncias que a mantém, ou pelos que a gerem, é de que a universidade constitui um espaço de liberdades. Isso mesmo, no plural, porque se trata de um conjunto diverso: liberdade de experimentar e expressar modos de ser, liberdade no agir e, sobretudo, liberdade no plano do pensar. Por isso a universidade é um local de poderosa inquietação intelectual e política, sua fertilidade provém e depende do exercício e experimentação dessas liberdades. Preservar essa singularidade institucional é manter vivo sua razão de ser e aquilo que a universidade, sob as Luzes do Esclarecimento, tem de mais precioso para oferecer para a sociedade, isto é: o seu aprimoramento intelectual e ético através da busca do conhecimento filosófico e científico do mundo, das relações humanas e da sociedade em que vivemos.
Para realizar essa missão civilizatória ideal, a universidade deve ser, como sustenta o filósofo Jacques Derrida, incondicional. Quer dizer, possuir uma liberdade incondicional de questionamento, de proposição e pensamento nas atividades que pratica e executa. A universidade não deve estar condicionada, isto é, submetida a nenhum poder ou princípios estranhos a ela e a suas tarefas de conhecimento e debate sobre a realidade. É a essa incondicionalidade e, por conseguinte, a sua mais nobre missão e função, que a Universidade Potiguar (UnP) atacou ao proibir e inviabilizar, em suas dependências, um evento acadêmico que tinha como objeto a discussão sobre a conjuntura política atual brasileira e suas consequências sobre a educação.
O evento, programado e divulgado com antecedência, foi organizado pelo Centro Acadêmico de Pedagogia Sueldes Araújo e contava com a participação de profissionais e estudantes da instituição e professores da UFRN e IFRN. Intitulado como “I Semana para o fortalecimento do Movimento Estudantil na UnP”, o evento visava, como o próprio título indica, a formação e aperfeiçoamento pedagógico e político dos estudantes diante de uma série de fatos e acontecimentos recentes que, como cidadãos, estudantes e futuros profissionais da educação, os implicam diretamente, tais como a Reforma do Ensino Médio, o projeto Escola sem partido e a PEC 241. Conforme relatado pelos participantes, os professores convidados não foram autorizados a adentrar na “Escola de Educação” (sic), mesmo com o público já aguardando no auditório para as palestras.
Ainda segundo o que foi informado, um integrante da gestão da universidade interviu arbitrariamente para impedir a realização do evento em razão de sua natureza “política”, a qual, assim teria dito o representante-gestor da UnP, não seria permitido na universidade. Os convidados, então, barrados na porta de entrada pelos seguranças, sequer mereceram dos diretores da instituição um esclarecimento – ou um pedido de desculpas – acerca do que estava ocorrendo. Apesar de todo o constrangimento e arbitrariedade, num louvável ato resistência, os organizadores, participantes e convidados não deixaram que a truculência antidemocrática dos gestores da UnP solapasse o evento, e o realizaram na rua em frente ao prédio da Escola de Educação.
O episódio não foi apenas profundamente desrespeitoso e autoritário. Ele foi, também, bastante grave e tristemente sintonizado com os afetos e atitudes antidemocráticas que recrudesceram no país ao longo dos últimos anos. Desse modo, fez com que a motivação acadêmica e a preocupação política que animavam o evento e a discussão proposta sobre projetos autoritários que tramitam no Congresso ganhassem, de uma maneira muito direta e, talvez, inesperada, ainda mais sentido e realidade.
Uma instituição que coíbe a sua própria comunidade e que não convoca a sociedade à discussão sobre o seu presente e futuro não é digna de ser intitulada como universidade.
Ela fere flagrantemente princípios inegociáveis, como a liberdade de pensamento e a autonomia acadêmica da comunidade docente e estudantil. Mais absurdo e incoerente é que tudo tenha ocorrido na “Escola de Educação”, a qual, ao que parece pelas mãos de seus gestores, deseja fazer de seus profissionais e estudantes, indivíduos cegos e surdos aos problemas e incertezas que batem ameaçadoramente a sua porta.
É importante destacar que a atual postura da UnP não pode ser reduzida a um ato isolado e destemperado de algum gestor particular. Precisamos analisá-la enquanto expressão de uma concepção simplificadora (gerencialista) de universidade. Dentro da qual a “Escola de Educação”, que comporta os cursos de pedagogia, letras e história, foi submetida e enquadrada a partir de recentes mudanças administrativas internas, as quais mudaram o perfil mais acadêmico que, até então, a escola cultivava, sendo por isso mais aberta e acolhedora as práticas de debate público e de discussão livre.
O “fetiche da gestão e do gerencialismo” resulta no grave equívoco de se tomar a universidade como se esta fosse como qualquer outra organização empresarial. De modo que, como tal, ela deve estar consagrada e regida pelos mesmos princípios e disposições instrumentais da ordem econômica e privada. Dito de outro modo, trata-se de submeter a gestão universitária ao empoderamento empresarial, aos ditames da “cultura corporativa” e o seu discurso acerca das exigências dinâmicas e sagradas do mercado flexível. A adesão irrefletida ao gerencialismo produz uma ignorância e incompreensão sobre a singularidade institucional da universidade, isto é, sobre os princípios que a fundam como uma instituição singular de cultura e civilização. Assim, em vez de “cultura acadêmica e pesquisa científica”, “debate público”, “formação para a cidadania”, “consciência política”, “pensamento crítico”, “função social do conhecimento e da universidade”, “liberdade de pensamento e de cátedra”, temos a hegemonia do discurso da “empregabilidade”, do “empreendedorismo”, da “criatividade e polivalência no trabalho”, da “pró-atividade na empresa”, do “fazer-dinheiro e ter sucesso acima de tudo” .
A ironia é que o gerencialismo da atual equipe gestora da UnP, e sua visão de que as organizações devem ser neutras e, portanto, não devem dar lugar a discussão política nos seus espaços e entre seus pares, não evitou que se instalasse entre seus funcionários e “clientes” um forte mal-estar e insatisfação com a empresa, assim como também não evitou os danos sobre a sua imagem e nome. Ora, como qualquer leigo em administração e recursos humanos pode concluir, saiu bem mais caro e prejudicial à empresa impedir o evento do que se ele tivesse sido realizado normalmente em seu interior.
Muito embora financiadas por recursos públicos e mantidas pelo Estado, as universidades públicas e sua comunidade docente, técnica e estudantil tem assegurado sua autonomia acadêmica e de pensamento diante da sociedade e do próprio Estado. O mesmo deve ocorrer em relação às universidades privadas quanto aos empresários e sócios que as mantêm. No entanto, como é sobejamente conhecido, a autonomia acadêmica e a liberdade de pensamento não são, na maioria dos casos, respeitados no mundo educacional privado. E isso porque não são compreendidos e aceitos como princípios da universidade – e da vida democrática em geral – em si, logo, incondicionados, não-sujeitos à interesses e princípios exteriores. Negar esse entendimento e princípios é fazer da universidade qualquer outra coisa, menos uma universidade. É transformá-la numa fábrica de emissão de diplomas e títulos, que, sem qualquer preocupação intelectual, ética e política sobre a vida comum e seus dilemas, injustiças e rumos, a maior e única pretensão legítima que interessa é arremessar as pessoas para dentro do mercado de trabalho, seja qual for as condições que este apresente para os profissionais recém-formados.
Os gestores da UnP devem compreender que a universidade é, acima de tudo e antes de qualquer coisa, uma instituição da palavra e do diálogo. Esse gerencialismo da mordaça não cabe em organização alguma, muito menos numa instituição fundada no debate de ideias. Como espaço de problematização dos dilemas científicos, filosóficos e políticos de nossa civilização, proibir debates é um atentado político e moral não apenas contra os que diretamente se engajaram em sua organização e realização mas contra a própria ideia de universidade. Mais ainda: contra a todos os que lutaram pela liberdade de dizer, pensar e discutir publicamente acerca das questões críticas da sociedade brasileira.
Que exemplo pedagógico e compromisso político com a democracia dão os gestores da UnP aos seus alunos e à sociedade quando censuram debates e discussões políticas e acadêmicas? Ou quando afirmam que a “universidade não é lugar de discutir política”? O pior e mais contraditório possível em se tratando de uma instituição educacional e acadêmica. Revelam, a um só tempo, uma imensa ignorância sobre o que é a vida acadêmica e uma má-fé atroz contra sua própria comunidade de profissionais e estudantes quando negam a esta a oportunidade do debate e do aprendizado mútuo acerca de alguns dos temas mais debatidos, controvertidos e urgentes do momento no país. Um descalabro completo. Privam os estudantes de um dos aspectos mais importantes da educação: o direito a um pensamento crítico, que é não só condição indispensável para produzir conhecimento fundamentado em qualquer área do saber, como também condição e garantia na defesa e conquista de direitos. Esse tipo de gerencialismo sufoca as energias intelectuais e políticas responsáveis pela fertilidade e força da experiência universitária e do conhecimento. Ele produz, para os seus próprios fins políticos, uma educação asfixiada, domesticada e medíocre, pela qual, perversamente, se deve ainda por cima pagar.
É lamentável que a censura, a qual em um passado não tão distante tanto maltratou as universidades e seus integrantes, parta das mãos e das palavras de pessoas que se pretendem gestores de uma. Por isso, na esteira do que escreveu o filósofo Karl Jaspers e na ideia de que a universidade se define essencialmente como espaço de liberdades, podemos dizer que o enclausuramento da palavra e do debate acadêmico significam também em grande medida o naufrágio das liberdades que todos aspiramos preservar e aprofundar como pré-condições para uma sociedade justa, democrática e formada por indivíduos autônomos no agir e no pensar.