Por Alyson Thiago F. Freire e Carlos Eduardo Freitas (Sociólogos e Professores de Sociologia)
O Brasil vive um momento de profundo desequilíbrio institucional. Atores e frações das diversas instituições do país cometem excessos em sua atuação, descurando de seus objetivos principais e limites. O governo Michel Temer prova mais uma vez esse diagnóstico ao valer-se de uma Medida Provisória para instituir uma ampla e contundente reforma no Ensino Médio do país sem a participação efetiva da sociedade e do Congresso Nacional na construção das diretrizes do documento. Desse modo, interrompe, bruscamente, o que até então, bem ou mal, vinha se caracterizando na política educacional como prática, isto é, o intenso debate e participação, como atestam os Planos Nacionais de Educação (PNE) e a elaboração da Base Nacional Curricular Comum. Que uma mudança de tal magnitude cujas consequências atingem milhões de pessoas, com decisivas repercussões em seus projetos de vida e destinos, seja tomada quase que autocraticamente sem ouvir sequer estudantes e professores e atropelando leis instituídas, como a LDB, e processos como a elaboração da Base Nacional Curricular Comum, que recebeu mais de 12 milhões de contribuições, revela, outra vez mais, o descompromisso dos que assumiram o poder com a legitimidade democrática e a soberania popular.
Temer, com o perdão do trocadilho, teme o debate público. Por isso, o silencia com seus decretos. O “não fale em crise, trabalhe” pode ser traduzido exatamente como um não questione, não critique, não pense, não reivindique, não participe, apenas obedeça e siga sua vida e compromissos, deixando o governo somente para os políticos profissionais e seus assessores.
O governo Temer tem se notabilizado, também, pelo uso de uma razão cínica, isto é, uma inconstância deliberada em seus atos e propostas políticas nos quais suas pretensões nunca estão totalmente explícitas ou ditas com todas as letras, mas, antes, nebulosas, veladas e flutuantes ao sabor das reações da opinião pública. Foi assim com praticamente todas as iniciativas e reformas propostas. A MP de reforma do Ensino Médio segue o mesmo caminho. Ela esconde perigos nefastos e velados para a educação brasileira e seus trabalhadores: desvalorização da formação docente, sobrecarga e precarização do trabalho, fortalecimento dos interesses privados de mercado, clientelismo e acirramento das desigualdades educacionais, são algumas consequências prováveis.
As idas e vindas da MP do Ensino Médio até o momento, onde informações são ora afirmadas ora desmentidas, como, por exemplo, a não-obrigatoriedade das disciplinas de Artes, Ed. Física, Sociologia e Filosofia, é mais um exemplo desse ardil político descarado, o qual sugere, no mínimo, um governo não confiável, de bases sociais bastante frágeis e sem rumo certo. O aparente recuo do MEC com respeito a tornar essas disciplinas optativas no Ensino Médio deve ser visto com ceticismo e alerta. Toda a MP é animada por um espírito de flexibililização, que, somado as características de cinismo que aludimos acima como traços do governo Temer, pode significar, na verdade, uma estratégia de jogar a responsabilidade do “serviço sujo” para outros atores. Quer dizer, quem de fato iria bancar a exclusão ou inclusão dessas disciplinas seriam os Estados, governadores, secretários de educação e estabelecimentos de ensino. Ora, as motivações conservadoras, os argumentos econômicos de redução de gastos, o uso interessado de índices e taxas educacionais se casariam perfeitamente para justificar supressões e enfraquecimento de componentes e conteúdos curriculares. Desse modo, o “peso da responsabilidade” não cairia mais sobre os ombros de Temer e o seu governo.
A flexibilidade dos currículos, dentro de um quadro caracterizado por forte desigualdade, pode intensificar as distâncias sociais e as disparidades educacionais entre os sistemas de ensino, as escolas e, por conseguinte, das próprias classes sociais. Teremos escolas com currículos mais homogêneos e parciais, outras com currículos exageradamente generalistas, vagos e frágeis, e algumas, de maior poder econômico, investimento e excelência de gestão, com currículos heterogêneos, completos e sólidos. Sem um plano consistente e construído coletivamente com a participação dos diversos segmentos sociais que integram o sistema educacional brasileiro, uma reforma como a pretendida por Temer pode ter consequências atrozes para acentuar as disparidades e contradições já existentes em nossa educação.
Entre as propostas da MP, destacam-se outras duas excrescências à altura do atual governo e seus “especialistas”, quais sejam: primeiro, a dispensa de formação pedagógica específica e diploma habilitador para lecionar uma dada disciplina. O “notório saber” na área torna-se, com efeito, comprovação e habilitação suficientes para exercer a docência. Com isso, profissionais podem assumir matérias distintas de suas formações específicas. Quem atesta o “notório saber”? O empregador, é óbvio. O resultado será a intensificação da concorrência e o desemprego de muitas pessoas que investiram ou que receberam investimento público maciço em sua formação acadêmica. Para os que conseguirem se empregar, restará uma realidade de incerteza, concorrência acirrada e sobrecarga de trabalho, uma vez que assumirão e lecionarão diferentes disciplinas, assim como terão de concorrer com profissionais de outras áreas afins para poder, inclusive, ensinar na sua própria área de diplomação. Nesses termos, a MP enseja uma situação social para os professores em que estes terão de viver sob uma ferrenha insegurança e instabilidade ocupacional e econômica no mercado de trabalho da educação. Não bastasse os diversos obstáculos pedagógicos que existem dentro dos muros da escola e numa sala de aula, o agravamento da instabilidade profissional e empregatícia certamente terá forte impacto sobre a qualidade das aulas e das relações de ensino-aprendizagem.
A segunda excrescência é a previsão de contratação de professores sem concurso, tudo em nome da flexibilidade, é claro. É preciso lembrar que a existência da legislação que regulamenta o ingresso na carreira profissional da administração pública mediante concurso público responde as exigências normativas de honestidade, eficiência, justiça, mérito e igualdade de oportunidades. O concurso como mecanismo de distribuição fundamental no exercício de cargos públicos foi uma conquista do funcionalismo público do Estado moderno, pois o libertou “relativamente” do alcance de influências personalistas e clientelistas de grupos políticos e econômicos externos ao Estado. Por sua vez, a exigência do “especialista” qualificado responde ao imperativo normativo de maior eficiência da função profissional.
Contra tudo o que foi apresentado acima, a nova medida provisória de reforma curricular do MEC, ao dispensar a obrigatoriedade da formação especializada no exercício da docência de um determinado componente curricular, na prática, fragiliza a expectativa de formação mais qualificada do conhecimento especializado. A exemplo disso, embora seja obrigatório o ensino de matemática ou de sociologia, qualquer outro profissional de área afim poderá ministrar o componente curricular, bastando apenas a comprovação de “notório saber”. E pior, sem a necessidade de ter sua competência técnica ou seu “notório saber” submetido ao escrutínio do concurso.
Não é preciso muito exercício de reflexividade para perceber que o dispositivo subjetivista do “notório saber” vai abrir a porteira para ampliar as práticas de clientelismo e personalismo na seleção e nomeação dos docentes na educação pública e privada do Brasil. E pior: sem nenhum “notório saber”. O que já existe de modo marginal e ilegal, agora vai se massificar e ganhar ares de legalidade e flexibilidade. Por isso, parece bastante plausível que a nova normativa do MEC contribua para a institucionalização do personalismo e do clientelismo no exercício do magistério, ferindo de morte os princípios de meritocracia, de eficiência e de igualdade de oportunidades na distribuição da ocupação de cargos públicos.
Essas duas propostas conjugadas redundam numa evidente desvalorização das licenciaturas e dos saberes docentes enquanto conhecimentos especializados. Mais: elas atingem duramente os projetos de vida e destinos de milhares de jovens que estão se formando e outros tantos milhares de profissionais que já atuam no ensino. Com essas propostas, estes se defrontarão com um mercado de trabalho ainda mais perverso, competitivo, achatado e desregulamentado, tornando ainda mais desigual as assimetrias entre professores e seus empregadores e intensificando o controle sobre o trabalho docente. Nesse sentido, uma medida que, em tese, afirma pretender valorizar a profissão e carreira docente pode, na verdade, precarizá-las ainda mais.
Na nova configuração da reforma curricular do ensino médio, o capital de relações pessoais vai acabar tendo maior peso do que a comprovada competência intelectual em determinada área de saber escolar. É grande o risco de piora na qualidade da educação escolar – que pode ser contornado via formação educacional suplementar em cursos isolados e preparatórios para pré-vestibular, como todas e todos sabem, no caso dos jovens oriundos da classe média e que estudam em escolas privadas. No caso especifico das/dos jovens estudantes de escolas públicas, o resultado promete ser um desastre. A já vergonhosa desigualdade escolar entre jovens de baixa renda e de classe média promete se ampliar. E as promessas de uma formação mais qualificada ofertada por especialistas de área escolar serão frustradas. Não obstante, políticos estaduais e locais vão ganhar mais uma moeda de troca em suas estratégias de apoio de votos em troca de cargos públicos. A famosa prática de “pistolão” vai ressuscitar com nome mais pomposo: “notório saber”.
É urgente e imprescindível a mobilização social. Não podemos aceitar uma reforma que, imposta integral ou parcialmente, não passou por nenhum debate com a sociedade, com os professores, estudantes, gestores escolares. Essa postura é flagrantemente incompatível com um regime democrático. Contra um governo que não dialoga, que não dá espaço a palavra daqueles que habitam fora das esferas de poder de suas alianças políticas e grupos de interesse, que teima em empurrar goela abaixo drásticas mudanças no presente e futuro das pessoas sem ouvi-las, só há uma coisa a ser feita: fazê-lo ouvir a sociedade nas ruas com manifestações, críticas, greves e ocupações.
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