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Desculpe o transtorno, precisamos falar sobre demonstrações públicas de afeto

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Gregório Duvivier publicou um texto com o título “Desculpe o transtorno, preciso falar da Clarisse”. O texto é claramente uma promoção do filme que ambos participam, mas gerou certo “rebuliço” nas redes sociais e colocou em pauta uma questão pertinente: as demonstrações públicas de afeto. Alguns afirmam que tal ação trata-se tão somente de uma demonstração ingênua de afeto, outras pessoas adotam uma visão mais crítica sobre o tema, afirmando que as demonstrações públicas de afeto podem esconder situações de constrangimentos, machismos etc.

Afinal, as declarações públicas de amor são boas ou ruins?

O amor patológico – o indivíduo como propriedade privada

As críticas feitas às demonstrações públicas de afeto são pertinentes e possuem bom embasamento. Surgem a partir de experiências danosas que muitas pessoas sofreram. Não é gentil desconsiderar tais relatos.

O beijo mais famoso do século XX – “eu tinha 18 anos e, quando desci do metrô, uma senhora me disse que a guerra tinha terminado e fui para a rua gritar. Vi à enfermeira e ela estava sorrindo, portanto simplesmente a agarrei” – V – J Day, foto por Alfred Eisenstaedt

Os indivíduos são racionais ao realizar suas ações. Sempre que agimos traçamos planos levando em consideração as possibilidades de resposta do outro após nossas ações. Toda ação é dotada de um sentido. Assim sendo, não há razão para ingenuidades: jogos de amor podem ser também jogos de poder.  Quem ama também erra, trama, articula, blefa, entre uma série de atitudes que passam longe da simples sinceridade, atributo, em teoria, indispensável ao amor e contrário a tramas, mentiras e articulações.

Em determinados contextos uma demonstração pública de afeto é, na realidade, uma forma de coerção pública que obriga o indivíduo a, pelo menos naquele momento, aceitar uma condição que talvez não lhe agrade. Sendo a mesma demonstração feita em espaço privado existiriam grandes chances de uma recusa. Em uma ação “racional” o indivíduo muda o campo de batalha, levando a vida privada para a esfera pública na expectativa de conseguir um novo fôlego. Traduzindo: fez merda no passado e agora pede desculpas em público para tentar obrigar outrem a aceitá-lo(a) de volta. O meio usado para isso é a manipulação da opinião pública para que saiam em seu favor dando legitimidade a sua ação. Traduzindo: uma tremenda sacanagem.

As demonstrações públicas de afeto nas redes sociais também são alvo de polêmicas. Uma foto ao lado de alguém nas redes sociais é uma demonstração pública de afeto.

De acordo com os dados de pesquisas na área de psicologia, muitos casais que postam fotos nas redes sociais o fazem por motivos de insegurança. A pesquisa afirma que: “Aquele que posta foto o tempo inteiro no Facebook pode até estar apaixonado, mas tem uma grande probabilidade de ser inseguro”. […] ” Estes resultados sugerem que os menos confiantes sentem a necessidade de mostrar seus relacionamentos aos outros e dizer que estão tão bem quanto seu relacionamento” (matéria completa aqui).

Existe aí também um efeito perverso de pressão social. Um exemplo claro: a relação não vai bem e uma foto pública pode gerar reações que possuem o efeito de retardar momentaneamente decisões que já foram tomadas. Assim sendo, é possível observar que existem uma série de pontos em relação as demonstrações públicas de afeto que precisam ser debatidos, já que conseguem esconder relações de dominação sob a aba de um sentimento visto por muitos como puro, como é o caso do amor. Resta saber: será que é só isso? Que as demonstrações públicas de afeto não passam de tentativas de reaver um erro ou pressionar indivíuos?

Amor no plural e o consentimento do chá

Existe uma animação chamada “Tea Consent” que pode ser vista abaixo. A animação tem pouco mais de 2 minutos e fala a respeito do consentimento na hora do sexo. Em resumo, o vídeo defende que “consentimento é tudo”.

Parece-nos que as demonstrações públicas de afeto poderiam seguir a mesma lógica do “tea consent”. É preciso, sempre, antes de cada ato de afeto conversar com o parceiro(a) sobre a questão. Alguns podem retrucar dizendo: “- mas eu queria fazer uma surpresa, se eu falar a respeito estraga”. Bem, sabemos que é possível sondar uma pessoa em relação aos seus gostos sem fazer as perguntas de forma direta.

Imaginemos que queremos convidar alguém para comer bife de fígado acebolado mas não sabemos se esse alguém gosta do prato. Que fazer? Existe a primeira opção que é a de levar a pessoa para um restaurante de surpresa e pedir o prato sem conversar sobre o tema ou então perguntar (como quem não quer nada, em um dia qualquer) o que ela(e) acha de bife de fígado acebolado. Existem mil e uma maneiras de preparar uma surpresa. Bife de fígado é bom para alguns. Para outros não. O dado é que não sentimos da mesma forma. Nossas experiências de vida influenciam na hora que olhamos para o mundo.

Para alguns demonstrações públicas de afeto são provas de amor. Para outros não. Alguns indivíduos vão gostar e aprovar as declarações públicas de amor. Algumas pessoas sentirão-se mais amadas com demonstrações públicas de amor. Outras sentirão vergonha.

Quem viveu ou presenciou situações amorosas nebulosas, convivendo com traições, desrespeitos, mentiras, violências etc. terá uma chance maior de desconfiar de declarações públicas de amor. Uma foto nova nas redes sociais, por exemplo, pode despertar sentimentos de desconfiança (“ele(a) fez alguma coisa de errado para tá querendo agradar”).

Quem viveu ou presenciou um passado  amoroso agradável, com respeito, alegria, confiança e não sendo submetido(a) a traições, desrespeitos, mentiras etc., poderá ter uma chance maior de despertar sentimentos de pura alegria, por exemplo, ao ver uma foto nova nas redes sociais. Neste contexto,  uma demonstração pública de afeto é tão somente uma demonstração pública de afeto. Em certas situações algumas pessoas simplesmente possuem a vontade de contar para todo o mundo sobre a sua felicidade. O faz não para salvar a própria pele ou tentar reverter uma situação delicada. Faz porque, apesar da surpresa ali instaurada, houve consenso. Existiu um diálogo prévio em que entendeu-se que a demonstração pública de afeto pode gerar alegria no lugar de constrangimento.

Creio que precisamos sim alertar as pessoas para os malefícios que podem surgir a partir das demonstrações públicas de afeto. Porém, demonizar a ação é impor uma só percepção sobre o amor e negar que outras pessoas podem amar de maneiras diferentes da nossa. Neste sentido, Machado de Assis parece acertar ao afirmar que “a maneira pouco importa, o importante é que se saiba amar”.

Enfim, é isso.