A ficção científica, se revela o caráter de coisa construída do presente, denunciando possíveis desdobramentos do mesmo num futuro hipotético, ou vaticinado – demostrando que nosso tempo é fruto de escolhas e deliberações políticas históricas e não um fenômeno natural, irrefreável e necessário, também delata que a própria realidade é uma ficção científica quando sua literatura se direciona para uma possibilidade do vir-a-ser ou do já-é do nosso tempo. Novamente, a ficção científica provoca o estranhamento não enquanto impossibilidade fantasiosa, mas como uma realidade futura provável, acusando que essa nossa realidade estranhada é, de todo, um mundo fictício tal qual aquele escrito nos livros, (re)produzido por narrativas, como a ficção especulativa ela mesma.
É assim que, por exemplo, em Duna de Frank Herbert as deliberações políticas a respeito da gestão de presos e cadeias podem, corajosamente francas (que, no nosso planeta, só seriam capturadas por uma escuta telefônica ilegal), tomar a seguinte forma:
“- Como vê, Conde, tenho o planeta-prisão do Imperador, Salusa Secundus, para me inspirar.
O Conde olhou para ele de modo intenso.
– Que conexão possível pode existir entre Arrakis e Salusa Secundus?
O Barão notou a aparência vigilante nos olhos de Fenring e disse:
– Nenhuma conexão, ainda.
– Ainda?
– Deve admitir que seria um meio de desenvolver uma substancial força de trabalho em Arrakis. Usar o lugar como planeta-prisão.
– Antecipa um aumento de prisioneiros?
– Tem havido agitação – admitiu o Barão. – Eu tenho sido obrigado a espremê-los com alguma severidade, Fenring. Além do mais, você sabe o preço que paguei àquela maldita Corporação para levar nossa força mútua até Arrakis. Esse dinheiro tem que vir de algum lugar…”
(Frank Herbert, Duna, p. 403-4)
Num mundo em que um golpe político dissimulado (similar ao que leva o Barão Vladimir Harkonnen ao domínio, novamente, do planeta Arrakis) instaura um programa de governo rejeitado pela maior parte da população, e tal programa passa a (re)discutir a política de trabalhos forçados nas prisões, sua privatização, em que – neste nosso planeta – os presos são em maioria negros e pobres praticantes de crimes menores e de pouca monta, não se pode estranhar que os planos de Temer (mas também de muitos), na voz de seu alter ego Harkonnen, já não estivessem sendo denunciados em 1965 por Frank Herbert.
As intenções e as consequências por trás dos “planetas-prisões” são as mesmas nos dois cenários. Não existe distinção.
Aqui a ficção científica não está realmente preocupada no que irá acontecer daqui a 10.000 anos num cenário medievo-futurista-jihadista, ou como na literatura de Philip K. Dick onde no futuro as prisões, em “Fluam Minhas Lágrimas”, têm a mesma função da proposta pela política de privatização das cadeias e utilização de sua mão de obra barata, negra e pobre, mas em revelar o caráter de distopia do próprio presente: de narrativa ficcional hedionda a mesma que sai da boca de um barão impossível num futuro e numa galáxia muito distante… o estranhamento que se tem ao ler Duna, que nos leva imediatamente a reconhecer paralelos por meio da comparatividade, é a força capaz de denunciar essa nossa realidade como ficção científica distópica.
Mas a realidade, como toda narrativa, é possível de ser reescrita, evitada, combatida, interrompida – esse alerta é o papel da ficção científica, sua força política e sua importância para compreender o presente.