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Significados da aversão de Jair Bolsonaro à ajuda de Jandira Feghali

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Quando soube que Jair Bolsonaro impediu que Jandira Feghali socorresse seu filho Flavio Bolsonaro no estúdio da Band, durante o debate de candidatos à prefeitura do Rio, a primeira reação que me veio foi o riso. Ri pra cacete na hora, de chorar mesmo. Foi difícil abafar o barulho pra não assustar a vizinhança, mas, pensando melhor, provavelmente foi puro reflexo e costume de silenciar risadas em companhia de terceiros (e olhe que tava sozinho em casa nessa hora).

A maior parte das pessoas riu do filho na hora que deu a tontura em frente às câmeras. Sinceramente, não vi nada de mais. A tontura dele não tem o menor traço de hilaridade diante do esforço do pai em não aceitar a ajuda de sua adversária política, mesmo ela sendo médica. Essa hilaridade encontra seu eco nas vaias que Jandira recebeu no bloco seguinte, quando noticiou pra audiência carioca o ocorrido no intervalo do debate.

Dito isso, antes de esboçar algumas interpretações possíveis do incidente – só lembrando: a rejeição do socorro de Bolsonaro pai, não o quase desmaio de seu filho –, é bom dar duas observações: 1) no que me diz respeito, rir de um acontecimento sério como esse significa que estou levando esse acontecimento em sua seriedade, com todas as consequências daí decorrentes; 2) as informações de que disponho são da própria Jandira, em sua declaração no debate, e da jornalista Berenice Seara, do Extra. Vamos lá:

1) A esquerda reagiu aturdida ao gesto do Bolsonaro pai – ó, gente, negando socorro ao próprio filho, que falta de humanidade (ou “poeira de humanidade”, como escreveram aqui), e assim por diante. Já pensaram que o próprio eleitorado de Bolsonaro pode tê-lo cumprimentado pelo gesto, livrando o filho das mãos de uma “bruxa da ditadura”? Essa é a mensagem discursiva embutida no título da notícia pelo Correio 24 Horas, que afirma que ele impediu ajuda de “médica comunista”;

2) Vocês tão pensando ainda na falta de tato do Bolsonaro pai com seu próprio filho? Pensem no recadinho dado com marca-texto cor de sangue que ele deu com o gesto: ele não impediu o filho de ser socorrido, apenas impediu que Jandira desse estricnina ao adversário dela na corrida municipal. Já se sabe da aversão política entre Jandira Feghali e Jair Bolsonaro, mas essa aversão passa a um nível ainda mais crítico em um momento como esse. Em termos mais claros: Jandira foi tratada como inimiga pública pelo capitão reformado. Pra quem acha que essa sugestão é absurda, recomendo a leitura de “O conceito do político” e “Teoria da guerrilha”, de Carl Schmitt;

3) Ainda tão pensando na falta de tato? Minha companheira tava comentando comigo que é crime impedir ajuda médica, da mesma forma que é crime um médico ou médica se recusar assistência. Respondi que Bolsonaro tava tocando o foda-se pra ajuda dele, justamente por considerá-la inimiga. Aqui vale lembrar Carl von Clausewitz, oficial do império prussiano e teórico de guerra, que afirmou que a guerra não é simplesmente resultado de atos racionais. Por isso, é perfeitamente compreensível a atitude do Bolsonaro pai – tanto que o próprio filho se retirou depois de algum tempo e foi pro hospital (1);

4) Ainda sobre Clausewitz: muitos lembram de sua frase clássica – “A guerra é meramente uma continuação da política por outros meios”. Mais de um século mais tarde, Michel Foucault retomou e inverteu essa frase na primeira aula de “Em defesa da sociedade”: “A política é uma continuação da guerra por outros meios”. A atitude do Bolsonaro pai dá a entender que ele vai além de ambos. Guerra e política, aí, deixariam de ser instrumento uma da outra e mal se distinguiriam entre si, principalmente se situarmos ambas as coisas como formas de atingir fins determinados (2). Elas se diferenciariam, no máximo, pelas circunstâncias em que ocorrem.

 

(1) E com direito a agradecimentos a Feghali e outro candidato, Carlos Osório, “pelos gestos de solidariedade ao socorrê-lo”. Nada como uma assessoria de comunicação para transmitir um sentimento de gratidão aos simpatizantes de Flavio Bolsonaro.

(2) Contra essa forma de conceber a política (que, ao que parece, domina também a própria esquerda), lembro Hannah Arendt, a grande teórica política do século XX, que se recusou a instrumentalizar a política em favor de fins determinados, mas que preferiu concebê-la como algo que resulta do encontro entre os indivíduos e propicia a formação do espaço público. Mas parece que a esquerda brasileira não é lá muito fã de Arendt, a não ser quando se trata de evocar o nazismo nos debates.