— Tição!
— Escrava!
— Nega preta!
— Sua preta!
— Catinga de nêgo!
Quem já ouviu isso? A quem se dirige esse tipo de fala? Com quem aprendemos a reconhecer quem somos? O que significa esse “somos”? Quando essas frases são ditas, estamos diante de situações de racismo, isto é, um tratamento seletivo com base em percepções sociais que se orientam por uma hierarquia valorativa sobre as diferenças entre raças e etnias e atribui o poder de uma sobre outra. Estamos falando de preconceito e poder. Em nossa sociedade, o racismo se construiu com base na exploração, violência, rebaixamento e segregação; é um componente comum que tem sido utilizado para a desqualificação social e rebaixamento moral de uma grande parcela da sociedade brasileira. A partir disso, com o objetivo de combater o preconceito e o racismo, emergiram as políticas de ações afirmativas.
As ações afirmativas são políticas públicas ou privadas que visam promover a igualdade de oportunidades e combater o preconceito e racismo com base no princípio da equidade e no histórico de injustiça, discriminação racial e desigualdades sociais advindas do período de escravidão que está em nossa história.
Ainda sobre isso, as lutas sociais que se travaram no Brasil historicamente devem ser compreendidas como modos de resistência coletiva às formas de injustiça social contextualmente situadas, isto é, colonização, escravidão, dominação masculina, opressão sexual, exploração do trabalho e marginalização social. Podemos encontrar essas narrativas nos livros de história mais cuidadosos, aqueles que refletem a colonização de povos para a construção de uma nação, não se esquecendo de dizer o quão violenta e sangrenta foi essa batalha para construir o que se compreende atualmente por “Estado nacional brasileiro”. No século XVI, é ruim lembrar, mas é importante fazê-lo, diziam – como se fosse uma justificação por si só – que “nós negras e negros não tínhamos alma”, por isso se “podia” impor condições sobre a existência dessa população. É nesse desenvolvimento da sociedade brasileira que está ancorado, histórica, jurídica, institucional e estruturalmente, o exercício pleno do poder de impor uma única história, um único lugar, uma única maneira sobre a qual se ergueu uma supremacia para encorpar o mito da “nação brasileira”. Mas, não esqueçamos, trata-se de grupos socialmente excluídos que lutaram por libertação e também, posteriormente, contra as relações assimétricas institucionalizadas de desigualdade e opressão. De modo geral, são lutas coletivas, sobretudo, motivadas por demandas de reconhecimento e uma tentativa de reverter as representações sociais negativas que recaem sobre negras e negros. No entanto, não podemos falar em reconhecimento sem conexão com a construção da identidade coletiva.
Por isso, ao falar em identidade coletiva, desejo retomar uma velha discussão racial no Brasil que parte do mito das três raças, onde “índios, negros e brancos” são colocados como uma mistura homogênea que deu origem ao “brasileiro” – uma identidade nacional. Nessa construção ideal, somos levados a acreditar que nossa formação nacional resultou de uma mistura onde cada segmento parece ter a mesma importância; sem nenhum conflito, de modo totalmente pacífico. Mas não é de hoje que aprendemos a ler o mundo e a refletir sobre ele.
Como se sabe, parte das ciências humanas tem desempenhado o importante papel de desconstruir esse mito fundador e apresentar, através da gênese histórica, como as lutas étnico-raciais foram e continuam sendo conflituosas, perversas, desiguais, exploradoras, combativas e resistentes. Mas a própria ciência tem adotado um duplo papel na história. Também sabemos que ela atua de forma conservadora na construção e legitimação dos mitos nacionais — de Gilberto Freyre a Roberto DaMatta, as narrativas científicas se deram ao trabalho de nos oferecer um mito pacificador: a “democracia racial”.
A mistura racial aparece como uma solução “pacífica” para neutralizar, apagar ou distorcer os conflitos e as contradições sociais que constroem nossa história. Para uma narrativa eloquente e pacificadora sobre a sociedade brasileira, foi inventada uma retórica que se ocupou em minimizar os efeitos condicionantes das hierarquias raciais e dos preconceitos vinculados. Mais, celebrou a existência de uma suposta “democracia racial” no Brasil como marca e elemento virtuoso de nossa “singularidade cultural”. O mito da democracia racial vinculou o “ser brasileiro” ao conceito de mestiçagem, produzindo uma identidade padronizada e homogênea.
Sejam quais forem nossas biografias, como pessoas negras e brancas, é preciso dimensionar e construir uma narrativa que produza transformação e autorresponsabilidade sobre as obrigações morais de todos os membros da sociedade. É acertado dizer que podemos ser afetados não só por acontecimentos que vivenciamos pessoal e diretamente, mas também que podemos aprender mutuamente na experiência vivida como encontro. Nesse sentido, as políticas de ação afirmativa integram um conjunto de dispositivos institucionais voltados para a correção de desigualdades historicamente construídas.
Para melhor entendimento, é preciso destacar que o argumento da reparação não é ancorado na culpa de quem praticou a escravidão no passado e de quem, no presente, sendo branco, tenha que se responsabilizar. Este é um processo que envolve reflexividade coletiva, que se abre a mais vozes e argumenta sobre as condições objetivas expostas em dados estatísticos e histórias de vida, sabendo que é a população negra a maior vítima de violência e aquela que mais sofre com a pobreza e a desigualdade. Só para termos uma ideia, segundo dados divulgados em março deste ano pela Organização das Nações Unidas (ONU), são 23 mil jovens negros que morrem por ano no Brasil, além disso, 75% da população carcerária é negra e 70,8% da população vivendo na extrema pobreza é negra. Desse modo, as políticas de ação afirmativa, estão preocupadas em compensar as injustiças passadas cujas consequências reverberam em nossos dias atuais.
Quando argumentamos que as cotas raciais vêm atender o princípio de bem comum, é porque nos parece racional – considerando que temos uma das sociedades mais multiculturais do mundo, onde 53,6% da população brasileira é autodeclarada negra –que nossa diversidade étnico-racial deva estar materializada também em nossas instituições públicas. Entretanto, não é bem isso que encontramos na vida cotidiana: atualmente são 30% os servidores públicos que se autodeclaram negros, talvez este percentual seja ainda menor se levarmos em conta a ocupação de cargos diretivos e de assessoramento no serviço público.
Se a desigualdade racial continua existindo, é justo dizer que o problema continua existindo. Embora tenha tido origem no passado, é fato que a discriminação racial ainda hoje persiste. Assim, é preciso não só reparar, como também corrigir e educar a sociedade para o exercício do respeito mútuo, do reconhecimento intersubjetivo e do lugar da cidadania como atributo coletivo de todos os membros da sociedade.
Assim, a implementação da Lei 12.990/2014 é uma política de ação afirmativa que visa corrigir essa assimetria no corpo administrativo de nossas instituições. Esse é o ponto que me interessa: se o corpo administrativo, político e institucional se limita ao alcance de somente um segmento de sua população (branca), suas perspectivas intelectuais, culturais e sociais não refletem a heterogeneidade de gênero, raça, etnia e classe social de toda a sociedade, logo não atende ao bem comum (lembrando as/aos leitoras/es a existência de uma interseccionalidade entre cor, gênero e classe social no caso da problemática racial no Brasil).
Na educação, a Lei 10639/2003, que institui o ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira, embora tenha sido sancionada há mais de 10 anos, continua com dificuldades para ser implementada. Apesar de termos avançado em relação à entrada de negras e negros no ensino superior, por exemplo, ainda persistem as assimetrias, uma vez que negras e negros ainda são minoria dentro das universidades e em posições de prestígio no mercado de trabalho. Em relatório atualizado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) informa que a participação de pretas/os e pardas/os decresce à medida que o nível de formação de bolsistas se eleva.
O exercício aqui não é numérico, por si só, posto que os dados estatísticos oriundos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam um quadro de referência que tem explicações na história, na antropologia e na sociologia. Ao argumentarmos em torno da diversidade, estamos dizendo que as consideradas “minorias étnico-raciais” não estão representadas em posições de liderança na vida pública. Uma vez que a Constituição Federal de 1988 reconhece o Estado brasileiro como pluriétnico, é um compromisso republicando para o bem comum que tenhamos uma sociedade representada nos vários segmentos e espaços de poder. Para além dos aspectos legais, é preciso considerar também os ganhos morais em termos de acúmulo de experiências de trocas interculturais. Isso implica um aprendizado moral coletivo. A gente aprende com a diferença; somos produtos sociais de um contexto de interação intersubjetiva, logo, temos muito mais a aprender dentro de uma comunidade pluriétnica que valoriza sua diversidade, considerando os diversos lugares e contextos socialmente construídos. O reconhecimento do patrimônio multicultural e étnico-racial pode contribuir para o desenvolvimento civilizatório da sociedade brasileira, por exemplo, os saberes étnicos a respeito da medicina tradicional ou da economia sustentável, bem como a contribuição na área de nanotecnologia da engenheira química Viviane dos Santos Barbosa, que desenvolveu um catalisador capaz de reduzir a emissão de gases poluentes e que fora premiada por este feito científico em 2011 na Finlândia.
Não foram poucas as teses mobilizadas contra a institucionalização de políticas de ação afirmativa no Brasil, em particular a política de cotas raciais no ensino superior. Diziam que as cotas raciais, além de ferir o “pacto republicano”, iriam produzir de fato um racismo por “efeito de injustiça e ressentimento” dos segmentos autodeclarados brancos, pois estes enxergariam nessas políticas uma “injustiça”, e isso nos levaria a um apartheid. Agora, alertaram algumas e alguns antropólogas/os, a própria política de cotas poderia produzir uma “desarmonia racial”, haja vista muitos brancos se tornarem racistas por efeito do sentimento de injustiça. Esse argumento, aparentemente bastante convincente ao senso comum, não encontrou e não encontra confirmação empírica na realidade brasileira. Conforme pesquisa inédita divulgada recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) liderada pelos pesquisadores Tatiana Silva e Emerson Rocha (< http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36917274 >), não é a política de cotas raciais que tem aflorado o racismo de segmentos brancos da sociedade, mas, precisamente, a ascensão social de negras e negros. Os pesquisadores mostraram que na medida em que negras e negros ascendem socialmente mais serão alvos de experiências de racismo por segmentos brancos estabelecidos, isso porque aos olhos dos estabelecidos (ricos brancos) nós negras e negros estaríamos ocupando lugares que não nos pertencem. O que incomoda verdadeiramente não é a cota racial, por si só, mas a ascensão social recente de várias negras e negros da população brasileira.
O debate sobre as políticas de ações afirmativas são sempre motivo de agitação na esfera pública brasileira. Semanas atrás, acompanhamos a publicação de uma Orientação Normativa do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=54&data=02/08/2016 ). Nela, é explícita a regra que estabelece uma banca de verificação nos concursos públicos para aquelas pessoas que se autodeclarem pretas e pardas com intuito de ingressar no serviço público fazendo uso da lei 12.990/2014, que destina 20% de vagas a pretos e pardos. O dispositivo foi recebido com estranheza e certa surpresa por alguns segmentos da população, que se manifestaram na esfera pública contra tal procedimento institucional, e colocou a discussão no furacão político que atravessa o país.
As acusações e contraposições sobre a orientação normativa foram alvo de um investimento de ocasião em que o foco do problema, a saber, a fraude cometida por pessoas brancas se passando por negras para obter uma vaga em concursos, ficou em segunda ordem. O exercício “crítico” foi de uma infelicidade que sequer optou-se por saber em que contexto as bancas se colocam; sob quais justificativas elas foram pensadas; o centro da discussão foi um ataque ao governo interino, revelando uma crítica de ocasião e um desdém para com uma leitura mais atenta sobre as fraudes e as solicitações dos segmentos negros para corrigir tais distorções.
A norma prevê a criação de bancas de verificação em que a/o candidata/o autodeclarada/o negra/o se apresente pessoalmente diante de uma comissão mista, formada segundo critérios que obedeçam à diversidade de gênero, cor e naturalidade. Entre os critérios de verificação a serem avaliados, o fenótipo da/o candidata/o é o aspecto central, isto é, serão suas características físicas levadas em consideração e não o elemento genótipo da ascendência, pois é sobre no fenótipo que se assenta o racismo brasileiro.
Em situações anteriores, o Supremo Tribunal Federal (STF) já foi chamado a arbitrar sobre estes dispositivos de verificação em concursos públicos e processos seletivos de acesso ao ensino superior. Para o STF, o preconceito e a discriminação que estão presentes em nossa sociedade não têm origem em uma herança genética, tampouco se diferenciam aspectos desta natureza em contextos de discriminação racial. Para o Supremo, essas diferenças estão presentes no fenotípico de indivíduos e grupos sociais, e por isso as bancas de verificação devem se guiar por estes elementos da aparência como determinantes para obter o direito de fazer uso da reserva de vagas e do sistema de cotas raciais.
Enfim, é de fundamental importância reconhecer que o sucesso de uma política de ações afirmativas no Brasil depende em grande medida da autocompreensão da sociedade, destacando aqui os membros dessas bancas, que negra e negro é uma categoria política de afirmação da identidade e que pessoas autodeclaradas pretas e pardas fazem parte desse registro, por isso é legítimo que se considere a trajetória de vida e o quanto o lugar social dessa afirmação ética foi crucial para o acesso a direitos e como marcador de diferenças que conformaram situações de discriminação e preconceito racial.